Por Enzo A. Balbini Antonacci; Diamantino Pereira
CRÍTICA URBANA N.6
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Em um país como o Brasil, que apresenta uma estrutura agrária das mais desiguais do mundo, o acesso à terra para a produção de alimentos provoca muitos conflitos. A disputa pela terra envolve entre outros métodos, a obtenção de decisões judiciais frequentemente prejudiciais aos pequenos produtores, mas a violência se manifesta com expulsões desses produtores e assassinatos de suas lideranças. Algumas vezes, entretanto, esses produtores conseguem se defender, permanecer em suas terras e, através de sua resistência, constituírem-se em produtores agrícolas relevantes.
A luta pela terra para a produção agrícola não ocorre apenas nos longínquos interiores, mas se manifesta até mesmo nos interstícios da maior área metropolitana do Brasil, como é o caso que envolve um contingente de agricultores posseiros no bairro de Jundiapeba, cidade de Mogi das Cruzes, Região Metropolitana de São Paulo.

Vista panorâmica do PDS e a área edificada do município (2018). Foto: Jonny Ueda
Com uma população estimada em 2018 de 440 mil habitantes, Mogi das Cruzes é uma das cidades com produção agrícola expressiva no Estado de São Paulo e tem importante papel na produção e segurança alimentar da população da região metropolitana, tendo como destaque a produção de hortaliças, frutas e legumes.
A década de 60 do século passado foi marcada no Brasil, por um intenso processo migratório quando grandes contingentes de trabalhadores do campo acorreram às cidades num processo denominado como “êxodo rural”, o que levou a uma intensa urbanização. Nessa época, o governo estadual cedeu um terreno com uma área de mais de 500 hectares para a construção de um hospital beneficente denominado Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, o hospital ocupou uma pequena área sem estabelecer um controle em toda a área.
Assim, a área não ocupada pelo hospital foi sendo objeto de ocupações por famílias de migrantes de várias partes do país com a finalidade de produção agrícola em unidades familiares de pequenas dimensões.
Hoje temos a presença no local de mais de 300 pequenos agricultores que enfrentaram a decisão do hospital de não reconhecer sua presença no local e posteriormente ter vendido a área para uma mineradora de areia que iniciou processo de expulsão dos produtores.
Os agricultores se organizaram através da criação da APROJUR (Associação dos Produtores Rurais de Jundiapeba e Região), conseguiram impedir a expulsão e, como resultado de sua luta contra a desapropriação, em 2013 a área foi declarada de interesse social para a reforma agrária. Iniciou-se então um processo de regularização fundiária, tendo também cessado todos os processos de reintegração de posse e de despejo que a empresa mineradora estava movendo contra os agricultores.
A intervenção do Governo Federal por intermédio do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) teve base na mobilização popular e atuação política dos agricultores familiares que reivindicavam a regularização fundiária da área. O INCRA optou por proceder à regularização na forma de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
O INCRA estabeleceu que os PDS devem prezar pelo “desenvolvimento de atividades ambientalmente diferenciadas e serem dirigidos para populações tradicionais”[1]. O órgão definiu ainda que eles “serão criados com vista ao atendimento de interesses sociais, econômicos e ambientais das populações que já desenvolvem ou que se disponham a desenvolver atividades de baixo impacto ambiental”[2]. A questão ambiental deverá ser um desafio na medida em que apenas um dos mais de 300 pequenos produtores do PDS é orgânico, os demais utilizam agroquímicos.
É perceptível a trama urbana que envolve o PDS, mesmo sendo de propriedade do Governo Federal, a especulação imobiliária é grande no entorno, há inclusive ocupações de moradias precárias de não agricultores nas áreas do PDS e nas de preservação permanente (APP). O INCRA é incapaz de fiscalizar as divisas do PDS, fato agravado pela sua localização em uma área de grande densidade populacional e com facilidade de acesso ao transporte coletivo na medida em que nas proximidades se situa a estação de trem da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Em torno de uma hora de viagem chega-se ao centro da cidade de São Paulo.
O PDS de Jundiapeba é um dos territórios com maior produção de hortaliças da Região Metropolitana de São Paulo. A maior parte da produção é comercializada na própria região e tem como carro chefe a produção de temperos como salsinha, cebolinha e coentro, além de hortaliças como alface, repolho e couve.
A produção é intensiva com o uso de insumos químicos, mecanização e alta produtividade. A área está economicamente integrada ao mercado devido à vasta demanda por estes produtos agrícolas na capital e adjacências. O trabalho agrícola em cada lote é realizado pela família que ali reside.
Há na área duas cooperativas agrícolas que comercializavam seus produtos em programas do governo federal como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Entretanto, a maioria dos agricultores vende seus produtos nas propriedades para atravessadores e feirantes, que os comercializam na capital ou na região. Alguns poucos agricultores comercializam diretamente a produção em feiras livres nos municípios da região.
Quem observa o número de caminhões e utilitários que rodam pelas estradas da área do PDS, carregados de alimentos, não consegue imaginar que foi um processo de resistência luta e participação política dos camponeses posseiros, que transformou o território de especulação imobiliária em território de resistência e produção de alimentos.
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Histórico de Ocupação de Resistência
A área do PDS foi incorporada pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, uma entidade filantrópica de saúde, para construção de um grande hospital na década de 1930. Acontece que a área onde o hospital foi instalado era uma parte ínfima de todo o território. Por volta da década de 1960 imigrantes japoneses começaram a ocupar a área, construindo pequenas chácaras com a finalidade de moradia e produção agrícola. Com o aparecimento das chácaras próximas ao hospital, a instituição filantrópica de saúde passou a elaborar contratos e cobrar taxas dos camponeses posseiros que ocupavam a área.
Muitos destes camponeses posseiros obtiveram sucesso na produção agrícola, passando a agregar mão de obra em parceria com trabalhadores que vinham trabalhar na região migrando de estados do nordeste e sul do Brasil. Esse movimento se intensificou nas décadas de 1970 e 1980. Alguns destes trabalhadores, com alguns anos de trabalho, conseguiram comprar a posse dos antigos posseiros ou iam ocupando terrenos vazios.
A inserção destes novos posseiros no território despertou o interesse da Santa Casa e, em meados dos anos 1990, contratou uma empresa imobiliária para regularizar a situação tanto dos antigos, como dos novos ocupantes. A empresa imobiliária começou a cadastrar e identificar os moradores do local para elaboração de novos contratos e, para isso, utilizou-se de argumento de coação, ameaçou cobrar prestações em atraso e instaurou uma ação de reintegração de posse na justiça envolvendo vários agricultores da área. Ou seja, a nova geração de agricultores posseiros que estava se estabelecendo na região, já se encontrava em situação difícil, uma vez que o nome do antigo contratante e sua divida recaiam sobre o atual posseiro. Ou saiam da área, ou assinavam um novo contrato de arrendamento com o valor estipulado pelo proprietário.
Estas ações da Santa Casa causaram um clima de revolta e insegurança entre os agricultores que passaram a resistir em conjunto e a se articular politicamente. Fizeram reuniões com representantes do governo, promoveram barricadas, passeatas e distribuição da produção agrícola em frente a órgãos públicos, mostrando a insatisfação com a situação. Em 1997 foi fundada a APROJUR (Associação dos Produtores Rurais de Jundiapeba e Região) com o intuito de unificar a luta, englobando o maior número de agricultores, tendo como base uma entidade legal constituída pela permanência destes agricultores produzindo na área.
Por meio da APROJUR os agricultores mantiveram diálogo com os órgãos do governo, mídia e a Santa Casa. Em 2006, quando a Santa Casa designou um advogado para negociar com a APROJUR, os agricultores propuseram a compra da área. Porém, em 2007 a área foi vendida para uma empresa de mineração de areia, a Itaquareia S.A.
Essa empresa não se sentiu somente proprietária da terra, mas também considerou que, por direito, deveria cobrar os valores relativos aos arrendamentos que não foram pagos pelos agricultores no período em que se tornou a proprietária das terras, desde 2007, até a compra da área pelo governo federal em 2014[3].
Ordens de despejo, ameaças com seguranças privados e um imbróglio jurídico pairou na área até o ano de 2013. Durante todo esse período, os agricultores mantiveram intenso diálogo com os órgãos de governo por meio da APROJUR. Nenhum agricultor deixou a área, a resistência foi grande.
O Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), órgão Estadual que tem como objetivo a demarcação e regularização fundiária no Estado chegou a fazer uma primeira demarcação da área em 2008 e o processo foi levado a instância federal, o INCRA, responsável por tal função.
O INCRA iniciou o processo de homologação das áreas dos agricultores, porém esse processo ainda não foi finalizado. Embora ainda com estas questões a serem definidas, com a compra da área feita pelo INCRA, motivado pela luta dos agricultores em permanecer e produzir alimentos na área, cessou a disputa entre agricultores e a empresa de mineração. Hoje a área sendo pública, ou seja, da União, não é passível de desapropriação, já que é ocupada para fins de reforma agrária. Esse problema não vem mais tirando o sono dos agricultores, a luta pela permanência do território camponês para a produção de alimentos garantiu-se até o momento.
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Aspecto da pequena área (0,5 ha) do único produtor orgânico do PDS (2018). Foto: Diamantino Pereira.
O Futuro do PDS de Jundiapeba e a preservação do território camponês
A demanda principal dos agricultores que se concentrou na questão da titulação da área, foi enfim resolvida. O foco então mudou para os problemas decorrentes da ausência e omissão do Estado durante todas essas décadas de ocupação. A luta dos agricultores agora recai sobre problemas de ordem das políticas públicas que garantirão a permanência deles na área com maior qualidade de vida e cidadania.
As respostas do poder público ocorrem em ações lentas e que acabam parando na burocracia estatal e na falta de recursos públicos como a ausência de fiscalização do INCRA, acarretando na ocupação para fins de moradia na área de preservação permanente. Esse processo de ocupação de áreas de preservação seria de esperar em uma área densamente povoada e com população de baixa renda. Em outras palavras, esses ocupantes atuais estão envolvidos no processo de conquista de um lugar para morar, fora do jogo do mercado, da mesma forma que os agricultores procederam décadas atrás quando ocuparam as terras da Santa Casa.
Desde o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff da presidência e no atual governo Bolsonaro, o INCRA foi levado à imobilização praticamente absoluta que culminou com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, órgão ao qual o INCRA era subordinado. Reflexo desta política do governo atual no PDS se resume a inexistência de assistência técnica rural, inclusive em falta de combustível para funcionários do INCRA visitarem a área, resultando em demora da homologação das famílias e da execução de políticas públicas para a cidadania no território por meio deste órgão.
Essa situação reforça a necessidade de continuidade da luta dos agricultores em relação ao seu território. Somente a persistência, a organização e o fortalecimento das associações e das cooperativas podem gerar a pressão no setor público e assim garantir direitos, políticas públicas para a área e a implementação, em diálogo com os agricultores, do chamado Projeto de Desenvolvimento Sustentável proposto pelo INCRA.
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[1] INCRA. 2019. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. [Online] 2019. http://www.incra.gov.br/assentamentoscriacao.
[2] INCRA, 2002. Portaria 1038/02. Brasília, Brasil : s.n., 2002.
[3] http://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2014/06/itaquareia-cobra-arrendamento-de-terras-de-agricultores-de-jundiapeba.html
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Nota sobre os autores
Enzo Augusto Balbini Antonacci. Graduação em Gestão de Políticas Públicas pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) e mestrado pelo Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP).
Diamantino Pereira. Mestre em Geografia pela USP, Doutor em Ciências Sociais pela PUCSP, Coordenador do ProMuSPP e do Grupo de Pesquisa Agriculturas, Ambientes e Sociedade, Professor do Curso de Gestão Ambiental da EACH-USP. i
Para citar este artículo: Enzo A. Balbini Antonacci; Diamantino Pereira. Posseiros, camponeses e luta pela terra. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.2 núm.6 Conflictos Territoriales I. A Coruña: Crítica Urbana, mayo 2019. |