Por Fabiola Cordovil e Leonardo Barbosa |
CRÍTICA URBANA N.19 |
Em um país onde a frota de veículos individuais cresce sistematicamente, poucas possibilidades se vislumbram para o transporte coletivo, não só nas grandes metrópoles, mas em aglomerados urbanos polarizados por cidades médias que reproduzem o padrão nacional.
Evidenciamos a situação da frota de veículos no aglomerado urbano de Maringá, formado por quatro municípios e refletimos sobre as possibilidades de inserir a “tarifa zero” como alternativa para ampliar o acesso ao transporte coletivo.
O contexto aglomerado urbano
O aglomerado urbano de Maringá, localizado no estado do Paraná, Brasil, é composto por quatro municípios, sendo um deles de porte médio, Maringá, e três menores, denominados Paiçandu, Sarandi e Marialva, compreendendo um total estimado de 605.537 537 habitantes[1].
Historicamente, a partir de meados da década de 1940, essas cidades, assim como outras, fizeram parte de um planejamento regional privado no qual Maringá se constituiu como um dos polos ao longo de um eixo rodoferroviário com distância 100 km de outros polos, além de outras cidades menores. Em uma grande área sem ocupação urbana anterior, a estruturação viária teve um papel primordial para o escoamento da produção agrícola e para a fundação dos núcleos urbanos de apoio e de armazenamento.
Paiçandu, Sarandi e Marialva são municípios que possuem maior integração com Maringá, que se desenvolveu apresentando um caráter fortemente concentrador, realizando movimentos pendulares mais intensos. Além disso, fazem parte do território funcional do aglomerado, no qual se verifica maior inserção na escala produtiva, na distribuição e acumulação de riqueza e de reprodução social. Assim, como cidades economicamente dinâmicas evidenciam um processo de expansão que se reflete em paisagens contínuas e intermitentes, o aglomerado urbano possui intervalos entre áreas urbanizadas e não urbanizadas, atingindo diversas localidades com características rurais, mas extremamente dependentes dos centros urbanizados, especialmente, com o polo, Maringá. Apesar da estruturação do transporte regional viabilizar a circulação e o acesso a áreas cada vez mais distantes, quando esta rede não se constrói e não faz parte das políticas públicas de mobilidade urbana, a tendência que se verifica é o crescente aumento do transporte individual, não apenas como opção progressivamente mais utilizada, mas cada vez mais exclusiva.
A hegemonia do transporte individual no aglomerado urbano de Maringá (2011-2021)
Os quatro municípios da aglomeração urbana de Maringá somaram, juntos, 456.910 veículos, segundo os dados do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), de janeiro de2021[2].
Desse total, 407.038 são de transporte individual de passageiros, o que corresponde a 89,1% dos veículos existentes. Neste estudo, consideram-se veículos de transporte individual de passageiros as seguintes classificações do DENATRAN: automóvel, caminhonete, camioneta, ciclomotor, motocicleta, motoneta, side-car, triciclo e utilitários. Nos quatro municípios da aglomeração, em janeiro de 2021, apenas 0,49% da frota correspondia a veículos com característica de transporte coletivo de passageiros.
O aumento da frota fica mais evidente ao verificarmos que, em 2011, a cada 1,84 habitantes havia um veículo de transporte individual de passageiros no aglomerado, e este índice, em 2021, passou a corresponder a 1,48 habitantes por veículo. Em todos os municípios, o índice vem diminuindo significativamente. O atual panorama leva-nos a ratificar a tendência de que a frota de veículos de transporte individual de passageiros tem substituído progressivamente o transporte coletivo (ver Tabela 1).
Em números absolutos, houve o acréscimo de 131.713 veículos de transporte individual de passageiros, de 2011 para 2021, sendo que as motos e motocicletas representaram 27.716 novos veículos, correspondendo a quase 35% a mais do que em 2011. A população na aglomeração cresceu 19% em uma década, ao passo que o total de veículos para transporte individual de passageiros ampliou-se para 48% de novos veículos na frota.
Transporte coletivo no Brasil e o financiamento tarifário pela população de baixa renda
O transporte coletivo é apontado com frequência como a solução mais viável para a mobilidade, em especial nos grandes arranjos urbanos. A inefetividade do transporte individual como principal meio de deslocamento é, acima de tudo, um problema de alocação de espaço, uma vez que o sistema viário tem capacidade de expansão limitada, sendo impossível absorver o crescente aumento da frota. O resultado é uma piora sensível na qualidade de vida das grandes metrópoles brasileiras, com tempos de deslocamento cada vez maiores, aumento nos índices de poluição e elevadas taxas de mortalidade no trânsito. Ressaltamos que estes efeitos são, cada vez mais, notáveis nas cidades médias, cuja frota de transporte individual cresce em ritmo muito superior à da população, como evidenciado no caso do aglomerado de Maringá.
O expressivo aumento da frota de transporte individual no Brasil, principalmente a partir da década de 1990, seguido de queda no número de usuários do transporte coletivo, alimentou um ciclo vicioso: com menos usuários, o transporte coletivo, sustentado predominantemente pelas tarifas, encarece –apresentando reajustes acima da inflação-, o que leva a migração para os modais individuais, em especial para as motos, devido ao valor mais acessível.
O descontentamento com os ajustes tarifários levou, em junho de 2013, a uma série de manifestações lideradas pelo Movimento Passe Livre contra o aumento tarifário na cidade de São Paulo. Um dos reflexos dos protestos, que repercutiu em diversas cidades brasileiras, foi a criação da Emenda Constitucional n°90/2015, proposta pela então Deputada Luiza Erundina (PSOL/SP), que deu nova redação ao artigo 6° da Constituição Federal, incluindo o transporte como direito social. A supracitada Emenda fortaleceu o debate sobre a necessidade de repensar o financiamento tarifário do transporte coletivo, incorporando outras fontes de recurso como subsídio. As discussões são centradas, sobretudo, em formas de taxação do transporte individual que se beneficia claramente do transporte coletivo pois, sem este, o deslocamento exclusivo por automóveis seria inviável. Este pensamento seria uma forma de corrigir a iniquidade existente na mobilidade, onde se tem o transporte coletivo, que beneficia toda a coletividade, financiado quase exclusivamente pelas famílias de baixa renda.
A “tarifa zero” como solução para o transporte coletivo
Um estudo realizado por Carvalho e pelo INESC (2019) simulou formas de subsídio para o transporte coletivo com taxação de fontes com progressividade de arrecadação. O estudo simulou cenários de subsídio de 30%, de 60% e de 100% da tarifa de ônibus urbano, apontando a necessidade de sobretaxas em fontes como IPTU, IPVA, taxas pelo uso do espaço público como estacionamento, folha de pagamento de empresas, e sobretaxa na gasolina/álcool. Atualmente, o transporte coletivo por ônibus é basicamente limitado a subsídios de algumas prefeituras que oferecem gratuidade a estudantes. Apesar disso, nota-se um avanço no número de cidades que adotaram a “tarifa zero” no transporte coletivo urbano, via subsídios municipais. De acordo com o portal Mobilize[3], no Brasil, 21 cidades já aderiram à gratuidade tarifária.
Outra dificuldade são os editais de licitação dirigidos para prestação de serviços de transporte coletivo no Brasil, livrando as empresas da concorrência e de exigências por melhorias nos serviços prestados, via de regra, de baixa qualidade. Este é o caso do transporte coletivo na cidade de Maringá que, desde 1975, é serviço prestado pela mesma empresa, a Transporte Coletivo Cidade Canção (TCCC). O último contrato de concessão firmado entre a empresa e a Prefeitura Municipal de Maringá (PMM) – Contrato de Concessão n°193/2011 -, previu a prestação dos serviços por 20 anos, prorrogáveis por igual período. O contrato que, ao longo de sua validade supera o valor de 1 bilhão de reais, foi contestado pelo Ministério Público por fraude na licitação, por supostas conversas prévias entre a PMM, a TCCC e uma empresa de estudos de mobilidade urbana.
O processo que ainda corre na justiça levou, em 2018, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores Municipal, que pediu o fim do contrato de concessão, devido a movimentações suspeitas nas finanças da empresa que alegava prejuízos na operação para justificar novos ajustes tarifários. Apesar da CPI, não houve movimentação neste sentido por parte do executivo municipal. Em abril de 2020 a empresa inclusive moveu ação contra a PMM, alegando prejuízos de mais de 3,8 milhões de reais por conta da queda de passageiros, motivada por decretos municipais de restrição de funcionamento de serviços, para o enfrentamento da pandemia da COVID 19. A TCCC perdeu o processo em 1ª instância, mas recorreu ao Tribunal de Justiça do Paraná, onde obteve liminar favorável em 8 de maio de 2020. A PMM recorreu da decisão da liminar ao Superior Tribunal de Justiça, que suspendeu os efeitos da liminar.
Este cenário mostra a urgência de se repensar a lógica da mobilidade urbana no Brasil, cada vez mais centrada no deslocamento por transporte individual. A tendência atual é de produção de uma forma urbana dispersa e fragmentada que tem gerado impactos sociais e ambientais. Parte da solução perpassa pela valorização do transporte coletivo enquanto política pública, em especial pela implantação de medidas de subsídio tarifário, tornando este modal mais acessível e atrativo à população. O financiamento destes subsídios deve priorizar fontes progressivas de arrecadação, com foco na maior taxação do transporte individual, modal este insustentável para o deslocamento dos centros urbanos dinâmicos.
Notas
[1] IBGE (2020). População estimada para 2020. Consultado em: www.ibge.gov.br
[2] DENATRAN (2011; 2021). Frota de veículos. Consultado em: http://www.denatran.gov.br/index.php/estatistica/237-frota-veiculos
[3] MOBILIZE – Mobilidade Urbana Sustentável (on line). Mais cidades adotam “tarifa zero” no transporte. Disponível em: https://www.mobilize.org.br/noticias/11896/mais-cidades-adotam-tarifa-zero-no-transporte.html?gclid=Cj0KCQiAv6yCBhCLARIsABqJTjYGlhyuc9eBPUGtou_QMTLA9Dh4e6HEOHzDwTI4vgcLbpfsxlwLLbgaAvsLEALw_wcB Acesso em: 01 mar. 2021s
Nota sobre os autores
Fabíola Castelo de Souza Cordovil: arquiteta e urbanista, mestre em Geografia, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP com Pós-doutorado em Geografia pela UFSC. Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Região Metropolitana de Maringá. E-mail: fcscordovil@uem.br
Leonardo Cassimiro Barbosa: arquiteto e urbanista, mestre em Engenharia Urbana, doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do Observatório das Metrópoles – Região Metropolitana de Maringá. E-mail: lcbarbosa2@uel.br
Para citar este artículo:
Fabiola Cordovil e Leonardo Barbosa. A “tarifa zero” como possibilidade para a mobilidade urbana acessível. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 19 Movilidad urbana justa. A Coruña: Crítica Urbana, julio 2021.