Política, em clássico dicionário organizado por um dos mais respeitados pensadores da ciência que a tem como objeto de estudo, Norberto Bobbio, é definida como termo “derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social”.
Nesse verbete, escrito pelo próprio Bobbio, o pensador italiano afirma ainda que “o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política”. Para Bobbio, essa obra “deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão (…) sobre as coisas da cidade”. (Bobbio, N et al., 1998, p. 954)
Séculos de história transcorreram antes que essa condição vinculada às questões exclusivamente afetas aos interesses dos cidadãos (no grego “πολίτικοι”, «polítikoi«) ou da cidadania (também derivado de civitas, cidade em latim), restritos ao universo de práticas e reflexões relacionadas às “coisas [e aos habitantes livres] da cidade”, fosse ampliada para uma compreensão da Política como campo de reflexões, ou de atividades e direção de atitudes, relacionados a quaisquer espaços e territórios, indistintamente vinculados aos estados nacionais e suas “várias formas de governo”, em suas configurações e elencos de direitos e deveres de cidadania, segundo as fronteiras que os definem.
Um dos marcos centrais dessa história, para a compreensão do que seja a Política hoje, relaciona-se ao advento do Estado Nacional Moderno e às muitas revoluções, acontecimentos e novidades interpostas a partir daí. As unidades geopolíticas que se assenhoraram do mundo, viabilizando o padrão de acumulação e organização social que igualmente dele se assenhorou, determinaram o sentido do que se entendeu e se fez (e em certa medida continua se fazendo) em nome da Política desde então.
Vale a pena registrar brevemente como e quando isso se processou, para entendermos a genética da Política com a qual lidamos ainda hoje.
Para um Mapa Político do mundo
Como ponto de partida, a referência obrigatória costuma ser os acordos assinados em Münster e Osnabrück em 1648, conhecidos como os Tratados da Westphália (região onde se situam essas cidades), que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).
A “Paz da Westphália” e os termos dos seus acordos, são unanimemente reconhecidos por estabelecer a moderna concepção de soberania territorial que passou a presidir as relações entre os estados-nacionais daí para a frente. A partir dela desenvolve-se o modelo que os reconhece não só pelos estatutos jurídicos, políticos e institucionais que lhes conferem identidades, mas por suas existências enquanto unidades físicas e territoriais.
O Estado nacional territorializado, — o país —, passou a ser a fonte exclusiva de poder e de determinação dos rumos econômicos, históricos e políticos das áreas circunscritas pelas fronteiras que os definem, incluindo as pessoas e as sociedades que em seus interiores se contêm.
A condição de igualdade jurídica e a soberania territorial, conferiu aos Estados um papel de protagonismo exclusivo também para as diversas ordens internacionais que a partir de então se estabeleceram. Eliminou-se assim, tanto no plano nacional, como no internacional, quaisquer resquícios de ingerências extraterritoriais, como aquelas que emanavam das ordens eclesiásticas que submeteram todos os lugares e nações do antigo mundo em que predominava a “geopolítica” feudal.
Além de soberanos, territorializados, juridicamente independentes, reconhecidos por seus pares e detentores de mesmos direitos, os Estados que a paz da Westphália consagrou pretendiam-se laicos e avessos a qualquer ingerência exterior em seus assuntos internos. Vinculados unicamente às determinações terrenas da política e da história das nações que abrigavam, as fronteiras dos diversos Estados, bem como os termos dos estatutos que os definiram, sofreram inúmeras modificações e aprimoramentos ao longo dos anos e acontecimentos posteriores aos acordos da Westphália.
As Revoluções Inglesas, do mesmo século XVII em que se estabeleceram tais acordos, assim como as Revoluções Francesa ou Americana, de um século e meio depois, por exemplo, aperfeiçoaram os mecanismos de representatividade jurídica e institucional dos Estados, acrescentando inúmeras novas características às concepções de soberania. Da mesma forma, as ondas revolucionárias que tiveram lugar nos séculos XIX e XX igualmente adicionaram os elementos que viriam a configurar os Estados nacionais modernos em suas versões contemporâneas, consagrando, ao lado dos aportes de aprimoramento institucional, promovidos pelas revoluções e acontecimentos anteriores, a condição do Estado como instrumento de representação coletiva, potencialmente promotor do acesso a direitos e da igualdade entre as/os cidadãs/ãos.
Em suma, importa aqui constatar que a partir dos “pioneiros” europeus dos séculos XIV e XV, que implantaram os antigos e primeiros países, os episódios que se sucederam apenas consagraram e ampliaram essa geografia política, dos novos Estados nacionais, fundada em unidades territorializadas por Estados soberanos. Nos séculos imediatamente posteriores a estes, e impulsionado pela expansão marítimo-comercial e a sucessão de acontecimentos referidos, esse modelo de organização se estendeu para o resto do mundo até atingir os confins do planeta, transformando-o em expressão territorializada da economia-política que o globalizou.
O cartografia desse mundo que ganhou o direito de ser adjetivada como política, — o Mapa-múndi Político —, passou a ser a carta que, orientada para o norte, exibe as fronteiras e os territórios dos países e assim indica e consagra o sentido, o significado e o conteúdo admitido para a Política: ação institucional, segundo os parâmetros legais e territoriais consagrados pelos Estados nacionais em moldes europeus. Mapas que indiquem outras fronteiras, recebem outras denominações, outras adjetivações, que não as da Política.
A Política imposta pelos limites estreitos das fronteiras nacionais e suas soberanias territoriais (considerando-se, diga-se de passagem, as hegemonias e/ou predomínios que nessas fronteiras determinada nacionalidade exerce sobre as outras), revela também uma dimensão de ordenamento, sufocamento e subjugação de tudo que é apropriado nesses espaços-continentes.
Fenômenos e/ou fatos, identidades e/ou agrupamentos humanos, cujos limites de expressão e/ou existência não se contêm, não se enquadram e não são contemplados por essas fronteiras tornadas hegemônicas e que definem o sentido da política territorializada nos mapas desse mundo, produzem a tensão permanente que também caracteriza o [mapa-mundi] Político, desde que este se estabeleceu. Sendo assim, o Político é igualmente sinônimo de crise, em suas mais variadas manifestações: econômica, social, cultural, religiosa, étnica, ambiental, ecológica, ecossistêmica…, uma vez que as fronteiras dos Estados nacionais dificilmente coincidem com aquelas que representam as territorialidades dos diversos outros fenômenos relacionados às dimensões dessas variadas manifestações.
O exercício da soberania é um exercício de subjugação. A tensão, as resistências e as manifestações desencadeadas pelo estabelecimento do Estado nacional moderno e os rumos que a Política trilhou desde então, sob a égide e os princípios dos contratos sociais, que de Hobbes a Rousseau animaram a implantação dessas instituições, igualmente aprimoraram e diversificaram os próprios sentidos da Política, das instituições, dos Estados e dos mecanismos de expressão coletiva. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 70 anos agora em dezembro (desdobrada e detalhada em acordos posteriormente celebrados entre quase todos os países signatários da Declaração: os pactos internacionais que tratam dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais), é, em certa medida, a culminância desse processo aqui aludido e é prova e expressão de que os limites dos Estados nacionais são insuficientes para abrigar os sentidos e rumos que a Política tomou. A geopolítica que os define, portanto, não se consagrou apenas como uma redução da Geografia Política, mas como redução da própria Política.
Questão de limites
Desde sempre, no entanto, ações e tentativas de conferir outro rumo para a Política, libertando-a dos determinismos estreitos das fronteiras e instituições nacionais, exclusivamente vinculadas aos Estados, acompanharam e interferiram na trajetória e nos resultados descritos. A Política que se pretendia enquadrada, provocada e tensionada pelos limites estreitos dessa pretensão, protagonizada pelos Estados e suas instituições, produziu as próprias trajetórias de ampliação, desenquadramento, no conceito e na ação.
De Marx-Engels, em suas exortações internacionalistas, consagrada no famoso Manifesto, a Ratzel, o antropogeógrafo alemão, que exortou por um conceito ampliado de fronteira (em seu ‘Geografia Política’) e pela ideia de uma “cidadania universal” (em seu ‘A Terra e a Vida’), passando por Darwin, Humboldt, entre outros, que ignoraram as limites impostos pelos Estados e estabeleceram suas teorias das alteridades biofísicas e das relações destas com as dimensões antropológicas, deslocando o sentido eurocêntrico de nossa cartografia, é possível observar essas trajetórias de ampliação e desenquadramento, que ao menos do ponto de vista das teorias e dos conceitos (mas com amplas repercussões práticas, diga-se de passagem), contribuíram para alargar o sentido da Política.
De alguma maneira, estes, entre muitos outros que também se poderiam evocar, contribuíram para inspirar aqueles que, motivados pelas mais diversas insatisfações, imprimiram à Política a ideia de que esta pode expressar a resultante de uma correlação de forças que, para além, ou aquém, das fronteiras nacionais, com suas pretendidas “naturalizações” de indivíduos e “nacionalizações” das dinâmicas e ingredientes físico-naturais, interfere no estabelecimento das fronteiras, das territorialidades, da expressão e da dinâmica dos fenômenos.
Com isso se presta aqui um tributo a uma outra possibilidade para a origem da Política ou da ideia do que ela seja. Esta possibilidade quem assinala é o geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves ao afirmar que “política, desde os gregos, é a arte de definir limites” e não apenas o que se praticava no interior de alguns desses limites, na cidade, por exemplo. Pólis, segundo Gonçalves, “era o nome originariamente dado ao muro, ao limite entre cidade e o campo” e, posteriormente, é que “se passou a designar pólis ao que estava contido nos muros, nos limites” (Gonçalves e Fernandes, 2007, p.19-20).
Sorrentino et al., que igualmente recuperam essa menção ao sentido original da Política afirmam por sua vez que o resgate desse significado, — “da política como arte de definir limites” —, remete-nos para a noção de “bem comum”, de “pluralidade”, de reconhecimento do outro e de regulação de interesses diversos e de garantia de espaço para a manifestação e existência de todos eles: “Quando entendemos política a partir da origem do termo, como limite, não falamos de regulação sobre a sociedade, mas de uma regulação dialética sociedade-Estado que favoreça a pluralidade e a igualdade social e política”. A pluralidade é, segundo Sorrentino, mencionando Hanna Arendt, a ‘conditio per quam’ da Política e esta, consequentemente, tem por função “a conciliação entre pluralidade e igualdade” (Sorrentino et al., 2005, p. 288).
A amplitude de ação, de conceito e de escala de abrangência, estão presentes, portanto, e desde a origem, nessa ideia — Política —, que nos remete a pensar na teoria e na ação e nos seus mais diversos âmbitos, do conteúdo ao continente, do institucional ao instituinte ou ao não institucional, nos limites e no que é limitado, no que está fora ou no que está dentro, no campo ou na cidade, urbi et orbi.
Claro que, as contingências históricas, as hegemonias que se estabelecem e as correlações de forças que se configuram podem ampliar ou restringir esse conceito. Neste sentido, como vimos, a despeito de todas as possibilidades e potencialidades da teoria e da ação políticas, precisamente pelo exercício dos poderes e das hegemonias historicamente prevalecentes, permanece forte a pressão de enquadramento e controle institucional da Política por parte dos Estados e de suas instituições. Sendo assim, todos os movimentos que a partir dessas mesmas instituições contribuam para alterar o curso dessa história, merecem a nossa atenção.
O mundo de hoje é prenhe de exemplos nesse sentido, particularmente nesse ‘canto’ subalterno e latino americano do mundo onde nos encontramos. Por aqui há acontecimentos e movimentações, inclusive institucionais, que podem tanto indicar ousadias capazes de alterar o curso de uma história de restrições e de enquadramento como essa que tem prevalecido, sugerindo sentidos novos e ampliados para os limites da política, como podem indicar a confirmação dos retrocessos e restrições que alguns, particularmente vinculados às ordens hegemônicas e estabelecidas institucionalmente, insistem em manter.
No campo das ousadias, que buscam ampliar os limites para os alcances da Política, há exemplos de atitudes e formulações, institucionais ou não, entre países latino americanos, já indicando passos de aprimoramento que podem ir além dos enquadramentos e das reduções promovidas pelos Estados nacionais, pelos contratos sociais e pelos ordenamentos sócio-culturais, exclusivamente europeus, que lhes dão suporte.
Perspectivas como as do ‘Bien Vivir’ e a ampliação dos fundamentos contratualistas para o âmbito de um ‘contrato natural’ e dos direitos da natureza, indicam a adoção de referências para a ação e o pensamento políticos que não apenas aqueles fundados nas perspectivas euro ou antropocentradas. Há países na América Latina, bem como movimentos sociais, nos quais essas possibilidades já estão sendo consideradas e praticadas.
Aos chamados “movimentos decoloniais”, como aqueles integrados pelas diversas Cumbres de los Pueblos de América, que passaram a denominar-se de ‘originários’ em um continente rebatizado de Abya Yala, talvez se possa atribuir a responsabilidade pela recuperação dessa proposta de existência social alternativa que a ideia de Bien Vivir representa. Segundo Anibal Quijano, mencionando a escritora peruana Carolina Ortiz Fernández, essa expressão e essa perspectiva é provavelmente a formulação mais antiga da resistência “indígena” contra a “Colonialidade do Poder”, e foi cunhada, segundo informam, em 1615. (Quijano, 2014, p. 847)
“… pelo exercício dos poderes edas hegemonias historicamente prevalecentes, permanece fortea pressão de enquadramento e controle institucional da Política por parte dos Estados e de suas instituições.”
Além de animar as motivações dos movimentos mencionados, essa perspectiva, do Bien Vivir, já foi incorporada nos aparatos constitucionais de alguns países da América Latina, como Equador e Bolívia, por exemplo, incluindo a referência a essa origem remota de resistência ao padrão de vida e organização social que o capitalismo europeu impôs aos povos da América. Na constituição do Equador, tanto no Preâmbulo como em diversos outros artigos, a evocação ao Bien Vivir faz referência à expressão quechua de sua origem – sumac kawsay – e no sétimo parágrafo desse preâmbulo se lê: “[Decidimos construir] Una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay”. Na constituição da Bolívia, ao consagrar os princípios éticos-morais do Estado plural (‘Estado Plurinacional’; divergente do nacional, portanto) faz-se referência ao “suma qamaña” – vivir bien – de origem aymará. Na Colômbia, considerando essas mesmas perspectivas, a natureza e seus integrantes foram elevados à categoria de “sujeitos de direitos”. Lá, já há rios, por exemplo, que adquiriram a condição de reconhecimento como seres vivos, conforme decisões recentes de sua Corte Constitucional (proferidas em 2016, disponíveis em < http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2016/T-622-16.htm>).
Os “direitos da natureza”, ou a natureza como sujeito de direitos (como de maneira explicita e pioneira se referem à Pacha Mama alguns dos exemplos mencionados) e a plurinacionalidade, estão consagrados nessas constituições e decisões, sugerindo que pelo menos nos textos que estruturam as instituições conformadoras desses Estados, há construção de outras referências para a teoria e a ação políticas. No mínimo, importante reconhecer que se amplia ainda mais o conceito da Política, incluindo, dentre as possibilidades conceituais que já se expôs e visitamos nesta reflexão, a ideia da Política como a arte de construir o “Bien Vivir”.
A colonização, incluindo o seu prosseguimento e manutenção no âmbito das mentalidades, também denominada de “colonialidade”, sufocou essa perspectiva e sua origem indígena, durante os seus séculos de vigência.
A fundação do Estado Nacional moderno e a formulação dessa “nova” concepção são contemporâneas. Ambas são do início do século XVII, como vimos. Para a recuperação dessa última — o “Bien Vivir” —, no entanto, precisamos não só nos libertar da colonização, mas do prosseguimento desta pela via das mentalidades, dos comportamentos e dos enquadramentos herdados. E aqui desempenharam importante papel as resistências ‘de(s)coloniais’ já mencionadas, que tiveram lugar, enquanto movimentos em inúmeras regiões e países, repercutindo e influenciando na organização institucional de alguns deles, como os exemplificados, que ampliaram os princípios de contratualidade e de direitos (sociais e naturais), revertendo, inclusive as prevalências ou hegemonias das nacionalidades únicas e impositivas, que fundaram os Estados Nacionais, para a perspectiva de Estados plurinacionais, que reconhecem as alteridades e o direito a existência, inclusive política e territorial, de todas as nações e povos abrigados em um mesmo Estado.
Antes de concluir, uma menção ao Brasil
Talvez não haja na América Latina país mais plurinacional do que este, já que aqui, segundo institutos e estimativas variados, há mais de duas centenas delas. O ISA, Instituto Socioambiental (a mais tradicional organização indigenista e ambientalista não governamental do país), registra 252 povos indígenas, a maioria vivendo na região amazônica; o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (o instituto oficial das estatísticas brasileiras), em seu último censo, registrou a existência de 240 nações indígenas. A Amazônia, por sua vez, embora seja espaço presente em 9 países, tem a sua maior parte no Brasil (60%) e esta corresponde quase à metade de seu território (40%). E na Amazônia, todos concordam, encontra-se o principal manancial de (socio)biodiversidade do planeta.
Embora o Brasil, apesar dessa evidente plurinacionalidade, ainda não tenha decretado isso em sua própria identidade de Estado, nem tampouco assumido integralmente a sua responsabilidade amazônica, ampliando os fundamentos de sua contratualidade institucional para o reconhecimento dos “direitos da natureza”, já havia dado passos importantes na ampliação e reconhecimento desses direitos com a promulgação de sua Constituição de 1988. Esta, que ficou conhecida como “Constituição Cidadã”, em função do processo de sua elaboração e da mobilização popular envolvida, completa 30 anos de vigência neste ano de 2018 e teve reconhecimento internacional especialmente por causa do capítulo consagrado ao meio ambiente, considerado dos mais avançados do mundo. Mas não só em relação a esse tema a Carta Magna brasileira foi considerada avançada, pois essa compreensão também se estendeu aos capítulos relacionados aos direitos sociais e até mesmo à admissão dos direitos originários dos povos indígenas, ou seja, anteriores à existência do próprio Estado brasileiro.
A potencialidade de ampliação das concepções e práticas políticas e também dos ‘contratos’ concebidos por esse conjunto de referências e regulações gerais, presentes na Constituição do Brasil, são evidentes. Muitos desses princípios já estavam em processo de implementação mais concreta, por meio das inúmeras leis regulamentadoras que proporcionariam isso. Porém, ao invés desse potencial continuar se desenvolvendo, a ponto de aproximar-se da consagração de ousadias e ampliações como as que se verificam em alguns dos países latino americanos exemplificados, promoveu-se aqui uma ruptura que ameaça de grave retrocesso todas as ampliações conquistadas a duras penas após a derrocada do regime militar, que até 1985 foi responsável pela ditadura instalada por mais de 20 anos no Brasil.
Uma sucessão de erros por parte dos movimentos sociais, de suas lideranças e dos partidos políticos que representavam esses avanços e que por eles foram responsáveis, ao lado de violentas reações, oportunismos e sabotagens promovidos pelos poderes econômicos, político-institucionais e midiáticos, representantes dos setores descontentes com a ampliação da ação política no país, compõem o conjunto de elementos que devem ser considerados para os que queiram enunciar a equação capaz de explicar a ruptura do movimento de ampliação da Política que estava em curso no país, ameaçando privilégios, promovendo alguma justiça socioambiental, em detrimento de alguns negócios, particularmente o agronegócio, que avança sobre os territórios indígenas nas áreas do centro-oeste e do norte do pais, nas regiões de domínio da chamada Amazônia Legal.
Dos elementos dessa mencionada equação é que se poderia extrair, por exemplo, algum esboço de entendimento para compreensão da interrupção do mandato presidencial da única mulher eleita presidente e por um partido de esquerda, na história da República do Brasil. Fato este que teve lugar em 2016, no início do segundo mandato de Dilma Roussef. Desde então, as medidas tomadas pela nova presidência, assumida pelo vice de Dilma, promoveram muitos dos retrocessos que compõem a tal ruptura, especialmente no âmbito das conquistas sociais e também no âmbito das políticas socioambientais. Uma reforma trabalhista aprovada em meados de 2017, que permite, entre outras medidas, o trabalho de mulheres grávidas em condições insalubres, ao lado da liberação de atividades de exploração mineral em antigas áreas de reserva natural na Amazônia, apenas para ficarmos em dois exemplos de grande repercussão, dão-nos bem a dimensão desses retrocessos.
No momento em que esta reflexão se concluía, aproximava-se o desfecho de um processo eleitoral, já em seu segundo turno, em que disputavam a presidência da república, dois projetos distintos de gestão do território do Estado brasileiro e que representam precisamente os polos que se colocaram em lados opostos da ruptura aludida.
De um lado, o partido da presidente deposta e do ex-presidente Lula (o mais popular da história do Brasil, atualmente preso e acusado de corrupção, em um processo cheio de vícios), tenta retomar, por meio da candidatura de um professor da Universidade de São Paulo — Fernando Haddad —, ex-prefeito da cidade de mesmo nome, a presidência da república, comprometendo-se a reverter essa ruptura e dar prosseguimento à trilha que permitiu a ampliação dos limites da inclusão social e dos direitos que o texto constitucional de 1988 e seus desdobramentos proporcionaram para um conjunto significativo da população brasileira.
De outro, um militar de baixa patente do exército (reformado, após prisão por atos de indisciplina) cercado de generais (um deles é seu candidato a vice-presidente), promete aprofundar o processo eufemisticamente chamado de “flexibilização”, investindo na retirada de direitos trabalhistas e sociais aos direitos dos povos originários sobre os territórios que ocupam, indicam-nos uma real possibilidade de retrocesso que, no mínimo, poderá nos remeter a momentos anteriores aos consagrados pela Constituição de 1988, nos quais a Política e seu exercício tiveram que ter os seus limites ampliados pela força dos movimentos sociais que se fizeram presentes, inclusive pelos canais não institucionais, combatendo o então regime ditatorial.
A depender das [ausências de] respostas oferecidas a esses retrocessos pelos movimentos sociais, no caso de uma vitória (mais do que provável) do candidato militar, esse retrocesso poderá nos remeter para situações ainda mais sombrias, típicas daquelas condições em que a Política, por força da lei e das imposições policiais e militares, restringe-se ao controle estrito do Estado Nacional, dos seus gestores e de seus juízes, de maneira nada flexível, plural ou inclusiva. Portanto, muito pouco adepta daquela “conciliação entre pluralidade e igualdade”, a que se referia Arendt (apud Sorrentino).
Como se vê, na América Latina hoje, as possibilidades diversas de concepção e de ação do Político manifestam-se, e a um só tempo, nos exemplos que pelas mais variadas vias, institucionais ou não, tem se apresentando em alguns de seus países.
Referências:
BOBBIO, N. et al. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília ,1998,
QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. – 1a ed. – Buenos Aires: CLACSO, 2014
GONÇALVES, C. W. P. e FERNANDES B. M. Josué de Castro, Vida e obra. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2007.
SORRENTINO, M. et al. Educação ambiental como política pública. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-299, maio/ago 2005
Para citar este artículo: Marco Bernardino de Carvalho. El de acción política en el territorio. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.1 núm.3. A Coruña: Crítica Urbana, noviembre 2018. |