Por Karla Moroso; Benedito Roberto Barbosa; Orlando Santos Junior
CRÍTICA URBANA N.4
A vida humana se encontra gravemente ameaçada sempre que submetida à lógica do livre mercado, baseada na racionalidade dos preços.
Essa afirmação encontra fundamentação no estudo do historiador e antropólogo Karl Polanyi em torno das transformações ocorridas entre os séculos XIX e XX. Nesse período foram realizadas reformas políticas e econômicas visando a promoção da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro, gerando efeitos perversos sobre a sociedade, em especial a pauperização e o crescimento das desigualdades e contrarreformas, incorporando a adoção de mecanismos de proteção social, na tentativa de subordinar o moinho satânico do livre mercado a valores e normas fundamentais à vida social.
É fácil perceber a ameaça social que representa esse moinho satânico. Imaginemos todas as relações sociais mercantilizadas, com todos os comportamentos submetidos à lógica dos preços. O resultado seria o fim da sociedade, já que não existiriam valores e princípios, tais como a reciprocidade e a solidariedade, capazes de dar coesão ao agrupamento de indivíduos e à sociedade.
Pois bem, Polanyi argumenta que o trabalho (as atividades humanas necessárias à própria vida), a terra (o campo no qual se planta e o solo urbano, no qual se constroem as moradias e equipamentos públicos necessários à vida), e o dinheiro (símbolo de troca) não são na sua essência mercadorias. Ao contrário, são bens essenciais à reprodução social. Assim, a mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro representaria uma grave ameaça à vida humana. Uma ordem econômica deve ser uma função da ordem social, da qual ela faz parte, e, portanto, deveria estar enraizada nos valores e princípios que fundamentam a sociedade.
Estendendo esse argumento para as cidades, pode-se dizer que o acesso ao solo urbano e à habitação são essenciais para a reprodução social. Por isso, a distribuição e o uso do solo urbano e da moradia não deveriam ocorrer sob a lógica do livre mercado, mas estar subordinado aos valores e princípios que garantissem a coesão e a justiça social. Sem isso, a própria sociedade está ameaçada.
Antes de atender a interesses econômicos e estar submetida à lógica do mercado e do lucro, a cidade é um direito coletivo, o que significa que precisa estar a serviço de toda coletividade, garantindo a proteção social e a qualidade de vida de todos e de todas. É por isso que o Fórum Nacional de Reforma Urbana – FNRU – defende o princípio da função social da propriedade.
A defesa do princípio da função social da propriedade, no entanto, não é resultado de uma concepção ingênua ou substantivada desse conceito. No capitalismo, o direito de propriedade, para existir e ser exercido, depende, contraditoriamente, da regulação pública e da forma não propriedade (imagine uma cidade sem espaços públicos de circulação). Em outras palavras, a própria propriedade subordinada à forma mercadoria depende, contraditoriamente, da forma não mercadoria, o que se expressa na adoção de alguma modalidade de função social da propriedade ou de utilidade pública nas normativas legais relativas à propriedade. Com efeito, as contradições decorrentes das tentativas de universalizar a forma mercadoria tornam necessário organizações que ultrapassam a lógica da forma mercadoria por meio de politicas de bem estar e a desmercantilização de certos bens e serviços. Assim, bem estar social, interesse social, interesse público, função social são sempre termos em disputa.
Tudo isso se reflete no conflito entre mercantilização e desmercantilização da propriedade. A função social é uma concepção em disputa, é sempre relacional envolvendo o que se entende por comum, bem comum, interesse comum, de um lado, e de propriedade e mercadoria, de outro. Do ponto de vista dos que defendem a superação da forma mercadoria e do modo de produção capitalista, o exercício pleno da função social implicaria no fim da propriedade, ou pelo menos da propriedade na forma mercadoria capitalista. Do ponto de vista dos que defendem a ordem liberal pura, o exercício das liberdades individuais de uso da propriedade implicaria no fim da sua função social como mecanismo de acesso à cidade.
Assim, para discutir nossa concepção de função social da propriedade é necessário partir do ideário do direito à cidade.
O direito à cidade pode ser compreendido como um direito coletivo de todas as pessoas ao usufruto equitativo da cidade dentro dos princípios da justiça social e territorial, da sustentabilidade ambiental e da democracia. Ou seja, o direito à cidade envolve o direito à moradia, ao acesso à terra urbanizada, ao saneamento ambiental, a mobilidade urbana, ao trabalho, a cultura, ao lazer, a educação, a saúde e a todos os bens e serviços necessários a reprodução social com dignidade e qualidade.
O direito à cidade também envolve o direito de recriar a cidade, o direito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde todos e todas possam participar das decisões relativas à forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a vida coletiva.
Nessa perspectiva, o FNRU defende que a função social da propriedade urbana implica na subordinação dos direitos individuais de uso da propriedade aos interesses e direitos coletivos, de forma a garantir o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano. A oposição entre propriedade privada e propriedade estatal deve ser progressivamente substituída por regimes de direito comum, em especial no que se refere à terra e ao solo urbano, mas também envolvendo o conhecimento humano, que podem ser considerados bens comuns fundamentais à vida. Nesta perspectiva, devem ser adotadas formas de criação, gestão e proteção desses bens baseadas em assembleias e associações populares, em processos participativos e democráticos.
O FNRU defende também a adoção de políticas públicas que efetivem a função social da propriedade, tal como previsto na Constituição Brasileira, sobretudo através da regulação do solo urbano, na perspectiva da promoção do bem comum e da justiça social, em contraponto à lógica mercantilista que impera na produção do espaço urbano, através da implementação dos instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, que devem ser aplicados dentro dos princípios constitucionais. A nosso ver, entre estas políticas, destacam-se:
- A adoção, pelo poder público, de medidas de desmercantilização da moradia e do solo urbano, incluindo a limitação no número de terrenos urbanos e unidades habitacionais, evitando concentração fundiária, utilizando-se de políticas que promovam uma justa distribuição dos benefícios do processo de urbanização, de forma a garantir uma cidade mais equitativa, mais democrática, plural e equilibrada ambientalmente, com acesso de todos e de todas à terra e à moradia digna.
- A limitação do tamanho máximo dos lotes / glebas no tecido urbano e induzindo a sua utilização através de regras que promovam a redução e o controle das mais valias urbanas, e novos mecanismos públicos de financiamento de programas e projetos que qualifiquem a cidade e garantam o direito à cidade e à moradia das populações mais vulneráveis;
- O reconhecimento, pelo poder público, da propriedade e da posse coletiva por meio de associações e cooperativas populares, as quais precisam ser potencializadas e instrumentalizadas com assessorias técnicas capazes de auxiliá-las na execução das suas ações para a defesa da sua moradia e dos territórios nos quais exercem os seus direitos sociais;
- A mudança do procedimento legal das reintegrações de posse e das ações possessórias no caso de litígios coletivos pela posse dos imóveis urbanos e rurais, de forma a proteger os direitos humanos e coletivos de milhares de famílias ameaçadas de despejo por medidas liminares em todo Brasil;
- A adoção, pelo poder público, de mecanismos, procedimentos e políticas que promovam a gestão e proteção da terra urbana como bem comum, por meio de processos participativos e democráticos da política e dos projetos urbanos, envolvendo assembleias locais, conselhos e conferências das cidades, de forma a garantir a progressiva institucionalização da gestão democrática das cidades.
Acreditamos que estes princípios e diretrizes são de fundamental importância para subordinar a lógica do mercado imobiliário aos valores e princípios vinculados ao ideário de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas e podem iluminar ideias mais criativas para as políticas urbanas federais do próximo governo eleito em 2018.
Para citar este artículo: Karla Moroso; Benedito Roberto Barbosa; Orlando Santos Junior. A cidade das pessoas: em defesa da função social da propriedade e da posse urbana. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.2 núm.4 La propiedad. A Coruña: Crítica Urbana, enero 2019. |