Por Ana Elisa Carnauba |
CRÍTICA URBANA N.23 |
A casa é o espaço do confinamento, cuidado e do trabalho não remunerado, corrobora o ideal do que se entende por lar e família. A rua é fundida por diversas barreiras que impedem a mulher de ocupar espaços públicos e se inserir no pensamento de novas políticas públicas. O ciberespaço é a ferramenta contemporânea que conecta e facilita a comunicação, e que também carrega a herança cultural do pensamento machista, um campo dimensional de assédio e violência. Três espaços da invisibilidade que atravessam a ancestralidade de regras, entendimentos e crenças pela forma como é designada a mulher.
Na sociologia é possível encontrar o significado do papel social, que nada mais é do que um conjunto de deveres que produzem o comportamento dos indivíduos junto a um grupo ou inserido em um princípio. Introduzindo esse conceito, nota-se que ao longo da história esse conjunto de normas não se aplicava igualmente entre homens e mulheres. Essas diferenças sexuais foram tratadas como destaque pelas quais as mulheres eram associadas como propriedade e constantemente violadas de seus direitos e de sua liberdade. Esse molde delimitado e construído tratou de consolidar regras de como uma mulher deveria se portar, resultando então em uma domesticação de gênero.
Doméstico
O entendimento de que como no passado houve uma separação de espaços por questões de gênero, muito se atribui a essa divisão que os gregos determinaram na criação da polis. Essa influência de que o poder, a criação de regras e toda a aproximação política cabem somente aos homens, e que o cuidado, o íntimo, reservado e o doméstico tornam-se lugares destinados às mulheres, todos eles foram somados e resultaram em uma idealização do que se entende por família. O lugar do confinamento, de submissão e o de servir, é a base de toda uma estrutura política e essa zona privada e doméstica é um dos grandes exemplos de um espaço da invisibilidade. Isso porque a idealização do lar ainda se associa com a imagem patriarcal onde o pai da família é o provedor da casa e a mãe está inteiramente ligada ao trabalho invisível, íntimo dos cuidados domésticos.
O cuidado não remunerado realizado no doméstico é permeado de moralismo que prejudica ainda mais a vida das mulheres, incorporado a diversas outras questões, que são mal pagas dentro e fora de casa. São serviços completamente desvalorizados e necessários, mesmo que inconscientemente ocupados, e quando rompem algumas dessas barreiras e assumem cargos semelhantes aos exercidos por homens, têm seus salários relativamente menores. O lugar do confinamento reduz à mulher as funções básicas de serviço e de reprodução de modo a controlar os corpos femininos. A essa servidão dificulta a emancipação das mulheres.
A violência doméstica é uma realidade global, apesar de nem todas as mulheres sofrerem de um determinado tipo de violência apenas. Situações de marginalização da estrutura da sociedade facilitam casos de maior vulnerabilidade. A violência se torna um veículo de silenciamento e apagamento de toda uma trajetória de luta e reivindicação contra um esquema patriarcal, opressor e sexista, como no caso de Marielle Franco. No Brasil, de acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), houve um crescimento de homicídios femininos em 2017. Em 13 assassinatos por dia, mais da metade das mulheres mortas são negras, representando quase 66% do feminicídio no ano de 2017, outro fato importante é o crescimento de cerca de 30% do número de mortes entre esses anos de 2007 a 2017.
Rua
Como o espaço não delimita a violência, a rua carrega fortes barreiras que reforçam todo contexto de hostilidade que é a violência cotidiana da mulher na cidade. Os bloqueios espaciais, a falta de iluminação pública adequada, as grandes distâncias cercadas por empenas cegas que não possibilitam o olhar protetor da vizinhança, o transporte público impróprio e superlotado, assim como, outras séries de fatores do cotidiano, dificultam o acesso dessas mulheres no espaço público. Consequentemente, a não integração das mulheres na cidade também é a não inserção da vivência e do pensamento feminino nas novas leis de políticas públicas, reproduzindo cidades sem a menor preocupação com a circulação e a ocupação das mulheres.
Diferentemente do homem que possui seu trajeto do ponto A ao B muito bem definidos, o percurso da maioria das mulheres de diversas faixas etárias ao longo do dia, é de um deslocamento feito por pausas, que engloba creches, escolas, supermercado, etc. Isso não apenas destaca a sobrecarga social de tarefas, mas também o lugar de vulnerabilidade aos riscos de uma cidade que se funda em armadilhas físicas, sociais e culturais que interferem na autonomia de uma mulher. Quando uma mulher se desvincula de alguns desses arquétipos de apenas se manter no doméstico e se insere no espaço público, ela encontra uma série de obstáculos, devido a estar sujeita à classificação pela roupa que usa, como se comporta, o lugar e a hora que circula, ela está passiva ao próprio estigma social que reage na forma de violência e assédio.
O protagonismo feminino na ocupação da cidade e na inserção do pensamento como educação, pode resultar em cidades mais seguras, acolhedoras e sem barreiras que reforçam a violência e que, atualmente não permitem que uma mulher possa ocupar o espaço público sem que seu corpo se torne público e alvo do assédio, que é invisibilizado por um território e uma problemática cultural que o patriarcado domina e reverbera, transcendendo até mesmo no urbanismo. A tentativa de ocupar o território com o corpo é uma marcha de protesto.
Ciberespaço
O espaço não físico cria novas potencialidades e fatores culturais. O espaço cibernético não dimensionado parece não ter também limites para a violência, e a COVID-19 exacerbou todas essas desigualdades da condição espacial, incluindo a virtual, que precisou ser adaptada e mais utilizada para atender às novas dinâmicas do distanciamento social. É possível notar que o assédio se adapta em diversos contextos e permanece como problemática de uma sociedade pautada em tradições patriarcais, machistas e sexistas.
Recentemente, em um contexto de pandemia, o Brasil presenciou cenas que tornaram pública a audiência online de uma acusação de estupro. Após um evento ocorrido em uma casa de festas, a influencer Mariana Ferrer fez a denúncia de estupro no dia 16 de dezembro de 2018, e depois 5 meses a espera da conclusão do inquérito, Mariana leva o caso as redes sociais como gesto de visibilizar e pressionar as investigações. No dia 20 de agosto de 2020, Mariana teve sua conta na rede social Instagram suspensa, o que destaca a clara intuição de silenciamento da vítima que buscava por meio das redes sociais, atualizar, expor e pressionar o caso que vinha em um processo demorado e sem solução.
A audiência virtual a qual Mariana Ferrer participa como única mulher presente é permeada pela violência, pois, ao longo do processo foi constantemente humilhada e constrangida por homens em uma condição espacial criada totalmente sem um suporte de proteção com a vítima. O ambiente machista da justiça a coloca em uma situação completamente vulnerável e a cultura do estupro se atrela as questões levantadas pelo advogado de André Camargo Aranha, que por diversos momentos expõe fotos de Mariana sem qualquer ligação com o crime, a fim de desvalidar o caráter da vítima, se atribuindo da justificativa das roupas que a mesma usava, da sua aparência e da maneira como se porta. No dia 09 de setembro de 2020, André Camargo e absolvido pela justiça de Santa Catarina, pois o promotor do caso afirma não haver como, durante o ato sexual, saber que ela não estava em condições de consentir, para ele não houve a intenção de estuprar, cria-se então a ideia do ‘’estupro culposo’’.
Nota sobre la autora
Ana Elisa Carnauba Rodrigues é graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB). Possui estudos no campo urbanístico e interesses nas questões de violência de gênero na cidade e nos espaços cibernéticos. Participa atualmente do Coletivo Amarelinha, observatório de pesquisas feministas em Arquitetura e Urbanismo. anaelisa.carnauba@gmail.com.
Para citar este artículo:
Ana Elisa Carnauba. A casa, a rua e o ciberespaço: lugares da invisibilidade. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.5 núm. 23 Urbanismo Feminista. A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2022.