Por Lucas Silva Pamio |
CRÍTICA URBANA N. 34 |
Na sociedade do consumo cada vez mais crescente, tem se tornado comum o descarte de produtos e mobiliários velhos, com a aquisição de novos.
Isso transforma a paisagem urbana em showrooms de itens descartados, refletindo tanto o aumento do poder de compra quanto a má gestão de uso e descarte. Muitos desses itens ainda poderiam ser reutilizados ou reformados, destacando a necessidade urgente de repensar nosso consumo e descarte para construir cidades mais sustentáveis e colaborativas.
A sociedade contemporânea testemunha uma dinâmica em que os indivíduos não hesitam em trocar ou descartar seus pertences quando estes deixam de ter valor ou utilidade. Essa mudança de perspectiva em relação à posse e ao desapego destaca a importância de adotar abordagens mais conscientes em relação ao descarte, incentivando a reutilização e a revalorização de itens que, de outra forma, poderiam ser considerados obsoletos. Com isso, os centros urbanos assemelham-se à interface real de jogos virtuais como o “The Sims”, da EA Games, em que além da interação entre os personagens, o jogo permite a construção de edificações e a inserção ou exclusão de mobiliários.
Mesmo considerando o estado em que esses mobiliários e produtos se encontram, é possível perceber que muitos deles ainda poderiam servir a outras pessoas ou serem reaproveitados e reformados. Essa perspectiva ressalta a necessidade urgente de repensarmos nosso relacionamento com o consumo e o descarte. Ao reconhecer o potencial de reutilização e recuperação desses itens, podemos contribuir para a construção de cidades mais sustentáveis e colaborativas. O desafio consiste em transformar nossos espaços urbanos em ambientes onde a mobilidade residencial não seja apenas uma realidade virtual, mas uma prática consciente e efetiva em nossa vida cotidiana. Ao adotar uma abordagem mais cuidadosa e reflexiva em relação aos objetos que nos cercam, podemos promover uma cultura que valoriza a durabilidade, a funcionalidade e a solidariedade, criando assim comunidades mais resilientes e ecologicamente conscientes.
De forma despretensiosa, a partir de deambulações pela região central das cidades paulistas, Santa Cruz do Rio Pardo e Bauru, durante os meses de novembro de 2023 a março de 2024, notou-se o recorrente aparecimento de mobiliários e produtos descartados, dispostos de maneira desordenada nas proximidades das vias urbanas. Estes objetos encontravam-se à mercê dos coletores de material reciclado e dos caminhões destinados a coletar itens não aproveitados pela população local. Este panorama não apenas ilustra a atualidade do tema do descarte na sociedade urbana, mas também revela o desafio contínuo de gerenciar de maneira eficaz os resíduos urbanos, estimulando uma reflexão sobre a responsabilidade coletiva em relação ao descarte e à gestão sustentável dos recursos.
A composição efêmera da paisagem, moldada pelos elementos desapegados que ora foram substituídos, ora perderam sua propriedade de uso, revela-se como um cenário em constante mutação. A transitoriedade desse espetáculo urbano é notável, uma vez que, após alguns dias, o descarte é removido, deixando para trás a incerteza quanto à sua finalidade. Este ciclo, longe de ser uma exceção, é, na verdade, a norma, refletindo-se na regularidade com que os descartes continuam a ocorrer. Sofás, mesas, cadeiras, prateleiras, portas, pratos e peças em geral compõem o catálogo variado de objetos que, em um momento, desempenharam papéis essenciais nas residências urbanas. A presença desses itens descartados não apenas revela uma dinâmica de constante renovação e consumo, mas também ecoa a perspectiva apresentada por Bauman[1], onde os descartes e os novos consumos convergem para fortalecer a complexa teia social da sociedade contemporânea.
Na triste poética que se revela na constatação de ‘tanta gente sem móveis e tantos móveis sem uso’, torna-se evidente a necessidade premente de repensarmos a maneira como lidamos com o descarte e a utilidade de nossos pertences. Em meio a essa dualidade de ausência e excesso, surge a imperativa missão de conferir um destino mais significativo àquilo que já não nos serve. A proposta de mobiliar as casas daqueles que não desejam ser meros figurantes nesse “The Sims” da vida real emerge como uma possibilidade concreta e transformadora. Ao invés de perpetuarmos a desigualdade na distribuição de recursos, poderíamos, coletivamente, abraçar a oportunidade de criar lares mais dignos e acolhedores. Este chamado para uma ação mais compassiva e solidária reflete a capacidade que temos de transformar a realidade, um móvel descartado de cada vez, e construir uma narrativa mais justa e inclusiva para todos.
Repensar usos, ou até mesmo permitir a recriação de formas e funções, representa uma maneira criativa de conferir novos destinos ao que poderá ser descartado. No entanto, caso essa seja a escolha, é crucial evitar pontos viciados e buscar alternativas sustentáveis, como os ecopontos, para a destinação adequada dos materiais. Na pós-modernidade, observa-se uma transformação nas relações de afeto, que para a psicóloga e pesquisadora Ecléa Bosi, as pessoas não mais se prendem tanto a objetos físicos.
De um lado, nossa sociedade ainda enfrenta desafios relacionados à ausência dos “bens” desejados ou necessários, perpetuando um cenário de carências e aspirações não plenamente atendidas. No entanto, paradoxalmente, do outro lado, observamos que a sociedade contemporânea está gradativamente trilhando um caminho rumo a uma coletividade marcada pelo individualismo e imediatismo. Este fenômeno se manifesta na crescente cultura de consumo, na qual as pessoas estão cada vez mais propensas a adquirir e descartar, buscando gratificação instantânea e priorizando suas necessidades pessoais sobre as demandas coletivas. Essa dicotomia entre a carência persistente de certos “bens” e a tendência para uma cultura de consumo individualista destaca os desafios e complexidades inerentes ao atual panorama social.
Consumo ou descarte: como nossa sociedade está-se adaptando?
Para abordar o desafio do consumo e descarte de uma maneira que nos desafie hegemonicamente, podemos adotar diversas ferramentas, a fim de promover a educação crítica nas escolas e comunidades sobre os impactos ambientais e sociais do consumo excessivo é fundamental. A mídia alternativa pode ser utilizada para conscientizar sobre práticas sustentáveis e destacar iniciativas de reutilização e reparo de itens descartados. Arte e cultura podem ser poderosas ao usar expressões criativas para chamar a atenção para a importância da sustentabilidade e do reaproveitamento. Além disso, movimentos sociais podem pressionar por políticas públicas que incentivem a economia circular e a responsabilidade compartilhada no descarte de resíduos.
Fomentar o diálogo e debate sobre a cultura do consumo e suas consequências permite que diferentes perspectivas sejam ouvidas e valorizadas. A pesquisa acadêmica também pode fornecer insights sobre práticas mais sustentáveis e eficazes de gestão de resíduos urbanos. Por fim, consumo consciente deve ser promovido, incentivando as pessoas a escolher produtos duráveis e de qualidade, repará-los quando possível e doar ou reciclar aqueles que já não são úteis. Adotar essas ferramentas não apenas desafia as narrativas dominantes, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais justa, sustentável e inclusiva.
A busca incessante por novas aquisições, muitas vezes impulsionada pela conveniência de substituir em vez de consertar, reforça a ênfase na satisfação individual imediata, em detrimento da sustentabilidade e da reflexão sobre as implicações mais amplas do consumo excessivo. Dessa forma, mesmo que essa dinâmica proporcione um impulso ao ciclo econômico, levanta questões sobre a verdadeira natureza da sustentabilidade em um cenário em que a facilidade de troca muitas vezes prevalece sobre o esforço de manutenção e reparo.
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Nota
[1] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Nota sobre o autor
Lucas Silva Pamio. Arquiteto e Urbanista, fotógrafo e pesquisador nas linhas de Teoria da Arquitetura e Urbanismo e Territórios Urbanos. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP-Bauru. E-mail: lucas.s.pamio@unesp.br.
Para citar este artículo:
Lucas Silva Pamio. A efemeridade da mobília: consumir e descartar. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 7, núm. 34, Más allá del pensamiento hegemónico. A Coruña: Crítica Urbana, diciembre 2024.