Por Simone Tulumello |
CRÍTICA URBANA N. 34 |
A questão da habitação, que regressa recursivamente na forma de “crises” [*] como aquelas, especialmente profundas, que estão a atravessar boa parte do planeta, é muito frequentemente caraterizada em termos de conflito de “direitos”: direito à habitação versus direito à propriedade. Em este conflito podemos vislumbrar a natureza, ao mesmo tempo emancipadora e ambígua, do próprio conceito de direito/s.
Tomamos, como exemplo, o caso da Constituição Portuguesa, aprovada em 1976 no quadro da transição democrática do país. Como muitas das constituições dessa época (a grega e a espanhola, por exemplo), a Constituição Portuguesa inclui o direito à habitação, resultado direto das lutas populares durante o PREC, Processo Revolucionário em Curso, o período entre a revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 e o golpe militar de 25 de novembro de 1975. O artigo 65, aliás, além de declarar o direito, atribui ao Estado a responsabilidade de garanti-lo. Contudo, tal direito nunca materializou para largas componentes da população. Só em 2019, por exemplo, Portugal adotou uma Lei de Bases da Habitação que regulamentasse os princípios para a prossecução do ditado constitucional e é uma lei muito fraca[1].

Los nuevos bloques construidos alrededor de Deansgate Square, Mánchester, contrastan con la arquitectura del siglo XIX de la estación de Knott Mill. Colección del proyecto Geograph. Wikipedia. Foto: David Dixon, https://www.geograph.org.uk/profile/43729
Ainda por cima, ao longo das décadas tem-se consolidado uma leitura jurídica do texto constitucional que considera que os direitos económicos (inclusive o direito à propriedade) tenham força jurídica de imperatividade, enquanto os direitos sociais sejam de caráter programático. O direito à propriedade, nessa leitura, é um direito fundamental defendido pelos tribunais, enquanto o direito à habitação limita-se a requerer que o Estado atue políticas públicas – portanto, sem possibilidade de defender o próprio direito à habitação em tribunal, por exemplo, em caso de despejo. Note-se: nada no texto constitucional justifica esta dicotomia – antes pelo contrário, no Portugal pós-PREC, a Assembleia Constituinte estava fortemente orientada para uma robusta defesa dos direitos sociais. A ambiguidade legal tem tido implicações concretas também fora dos tribunais. O maior investimento no campo da habitação do Estado português democrático tem sido colocado nos subsídios aos juros para a aquisição de habitação – na promoção do direito à propriedade da habitação, isto é. Ou, melhor, sendo que os subsídios são sistematicamente capitalizados nos preços da habitação, a maior política “de habitação” do país de facto usava os direitos constitucionais à habitação e à propriedade para justificar uma política que beneficiava os setores financeiro, do imobiliário e da construção.
Como interpretar tais contradições e paradoxos? Parte da explicação está no processo de normalização democrática que Portugal atravessou logo a seguir do fim do PREC, com a viragem neoliberal desde o final dos anos 70, pela qual foi crucial o papel pacificador jogado pelo atlantista e contrarrevolucionário Partido Socialista – que, marginal ao PREC, conseguiu tornar-se no partido dominante nos anos que se seguiram, abrindo o caminho aos governos de direita dos anos 80.
Mas – é o ponto que me interessa enfatizar – precisamos também indagar as ambiguidades e potencialidades do próprio conceito de direito/s. Com uma curta digressão, vale a pena mencionar as reflexões quanto à natureza fundamentalmente “ocidental” do conceito de direito – as intimas ligações entre esse último e questões como a ontologia individualista do pensamento liberal que, de ocidental, se tornou globalmente hegemónico (como especialmente evidente no trabalho das grandes organizações internacionais como a ONU) – e as dificuldades em “traduzi-lo” para os contextos locais[2]. Isso deveria, por si, sugerir quão é difícil materializar um programa social de matriz socialista – como o que era hegemónico em Portugal durante e imediatamente a seguir do PREC – numa gramática liberal. Dificuldades que se tornam paradoxos quando o programa social coletivo de acesso universal a uma habitação condigna toma o mesmo formato legal do instrumento fundamental para a construção do sistema capitalista (o “direito à propriedade”). Não deveria surpreender, afinal, que as duas formulações aparentemente equivalentes (direito à habitação versus direito à propriedade) resultem, num pais que se torna democracia liberal, numa prática legal que consegue garantir e fiscalizar exclusivamente o “direito individual à propriedade” – ou, melhor, o direito a utilizar a propriedade imobiliária como mecanismo de especulação em conflito direito com o direito à habitação.
Contudo, os movimentos sociais e políticos têm aprendido à utilizar estratégica e taticamente essas mesmas ambiguidades. A poderosa apropriação recente do conceito lefevriano de “direito à cidade” nas lutas urbanas é talvez o exemplo mais conhecido[3]. No campo da habitação, um exemplo relevante é a recente utilização, em países como Espanha, Portugal e Itália, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PI-DESC). A pedido de movimentos ativistas, o gabinete do Alto Comissário ONU para os Direitos Humanos (OHCHR) tem emitido pareceres jurídicos que foram utilizados para interpor providencias cautelares e parar vários despejos sem solução habitacional. O mecanismo jurídico, na sua simplicidade, revela as hipocrisias dos Estados que tem ratificado o PI-DESC mas não o operacionalizam – inclusive quando a sua operacionalização significa simplesmente, como no caso português, pôr em prática um ditado constitucional. Para estes Estados, ratificar o PI-DESC é necessário para ser reconhecidos dentro de uma “comunidade internacional” que valoriza o reconhecimento dos direitos; daí o poderoso valor simbólico do recurso ao OHCHR, que, ao intervir, expõe os Estados ao desdém dessa mesma comunidade.
Esses movimentos ativistas estão plenamente conscientes das potencialidades e riscos que comporta a mobilização da prática legal e da gramática dos “direitos”: por um lado, a possibilidade de dar “força jurídica” a agendas que são frequentemente etiquetadas de “radicais”; pelo outro, precisamente o risco de diluir a radicalidade da agenda na procura de soluções práticas e de uma linguagem adequada à instituições de matriz fundamentalmente liberal[4]. As possibilidades emancipadoras da mobilização do/s direito/s parecem residir precisamente na capacidade de navegar estas ambiguidades.
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Notas
[1] Ver www.housingrightswatch.org/content/brief-assessment-portuguese-framework-law-housing
[2] Ver Panikkar R (1982) Is the notion of human rights a Western concept?, Diogenes 120, 75-102; Merry SE (2006) Transnational human rights and local activism: Mapping the middle, American Anthropologist 108(1), 38-51.
[3] Como explicado por Francesco Biagi recentemente nesta mesma revista, Lefebvre não usava o conceito de “direito à cidade” em sentido legalista, isto é, não tinha intenção de adicionar mais um novo “direito humano” à lista. Contudo, não me parece que isso, por si, resolva por completo o problema (feito de potencialidades e ambiguidades) da própria escolha do termo “direito”. Ver Biagi F (2024) Espacio y política. Henri Lefebvre y el derecho a la ciudad, Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales 32, https://criticaurbana.com/espacio-y-politica-henri-lefebvre-y-el-derecho-a-la-ciudad
[4] Ver, para uma reflexão em primeira pessoa sobre os recursos ao PI-DSC, Davoli C, Portelli S (2024) Irreparable damage: international housing rights and local housing struggles in Rome after 2020, Partecipazione e Conflitto 16(1), 87-105; e, para uma discussão mais teórica, Kusiak J (2021) Trespassing on the law: Critical legal engineering as a strategy for action research, Area 53(4), 603-610.
[*] As aspas devem-se à natureza problemática do conceito de “crise” num campo, o da habitação, em que a crise é permanente para vastos grupos sociais. Ver Tulumello S (2024) Habitação para além da “crise”. Políticas, conflito, direito, Lisboa: Tigre de Papel.
Nota sobre o autor
Simone Tulumello, investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, investiga as dimensões globais da urbanização, com interesses temáticos em volta de habitação, violência, imaginários.
Para citar este artículo:
Simone Tulumello. Direito/s: ferramenta emancipadora? Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 7, núm. 34, Más allá del pensamiento hegemónico. A Coruña: Crítica Urbana, diciembre 2024.