Por Tarcyla Fidalgo Ribeiro |
CRÍTICA URBANA N. 34 |
A propriedade privada se consolidou, historicamente, como modelo hegemônico de relação sociojurídica estabelecida com a terra em nível mundial. Muito afinada com os princípios e propósitos capitalistas, a propriedade privada se alinha ainda mais com conceitos aprofundados no contexto neoliberal como o individualismo e a meritocracia.
Embora a origem da propriedade seja mais antiga, é possível afirmar que sua difusão como modelo hegemônico se dá com o advento do capitalismo, se espalhando pelo mundo a partir de práticas neocolonialistas.
No entanto, apesar de ser até mesmo difícil imaginar relações com a terra fora do paradigma da propriedade privada, este nem sempre foi hegemônico em nível mundial. De fato, povos e comunidades tradicionais de diferentes partes do planeta desenvolveram arranjos alternativos, via de regra partindo de alguma perspectiva de coletivização dos direitos e deveres inerentes à propriedade da terra.
Assim, experimentamos nas últimas décadas algumas experiências contra hegemônicas inspiradas em práticas e conhecimentos ancestrais como os ejidos mexicanos, os kibutz israelenses, a propriedade comunal em Barbuda e alguns modelos africanos de domínio territorial.
Não por coincidência, as experiências acima citadas se situam no chamado Sul Global, apresentando uma dimensão decolonial na medida em que resgatam saberes e relações ancestrais em uma tentativa de subversão do paradigma hegemônico imposto pelos países capitalistas e neocolonialistas do Norte Global. Importante destacar que, nos dias atuais em que a maioria das pessoas vivem em espaços urbanos, terra significa -primordialmente – moradia, direito e necessidade básica de todos os seres humanos e que enfrenta diversos desafios para sua garantia, especialmente nos países mais pobres.
No entanto, um modelo de coletivização das relações sociais com a terra vem se estabelecendo de forma transversal entre Norte e Sul global, oferecendo uma alternativa interessante à subversão da hegemonia da propriedade privada a partir da sua própria utilização: os Community Land Trusts. Esse potencial de subversão a partir da própria utilização da propriedade privada é um fator que facilita a aplicação do modelo e permite sua difusão de forma mais rápida pelo mundo.
Basicamente, o modelo dos Community Land Trusts opera por meio da separação da propriedade da terra e das construções, garantindo a acessibilidade econômica das últimas pela retirada do preço da primeira de eventuais negociações. A ideia é simples, apesar de contraintuitiva pela hegemonia da propriedade privada e liberdade individual: a maior parcela do preço de um imóvel está determinada pela sua localização, ou seja, está contida na terra. Quando se retira a terra do mercado – e portanto seu preço da equação – a moradia, que é consubstanciada pela construção, é transacionada (alugada ou vendida) por um preço mais baixo, permitindo acesso às classes populares em caráter perpétuo.
Ou seja, a partir do CLT permite-se o desenvolvimento territorial e a instalação de infraestrutura urbana sem impactar na valorização das casas, evitando o processo de expulsão dos mais pobres de áreas recém infraestruturadas pela ação do mercado imobiliário.
Desta forma, o CLT subverte a perspectiva individualista da propriedade privada a partir de um arranjo proprietário. Assim, evita resistências institucionais e ideológicas ao mesmo tempo em que resgata valores comunitários e restaura, na contemporaneidade, relações comunais com a terra e a moradia.
Vale destacar que os CLTs surgem na década de 60, no âmbito da luta do movimento negro norteamericano, e se espalham a partir da década de 80 por diversos países. Atualmente há experiências nos Estados Unidos, Canadá, Porto Rico, Brasil, Inglaterra, Bélgica, França, Alemanha, Quênia e grupos interessados em diversos outros países. O sucesso do modelo na conjugação entre liberdade individual e força da coletividade levou ao seu reconhecimento na Nova Agenda Urbana da ONU que, em seu item 107, o destaca como modelo a ser fomentado pelos Estados signatários na busca pela garantia de moradias acessíveis e sustentáveis.
Um dos pontos fortes do modelo é sua flexibilidade, que permite a aplicação em territórios com contextos jurídicos, políticos e sociais diversos. Um exemplo é a flexibilidade em relação à situação da terra: os CLTs podem ser aplicados em terras púbicas ou privadas, que podem ser adquiridas por diversos meios como a compra e venda, doação, processos de regularização fundiária, concessão estatal, entre outras opções. Assim, independente do tratamento dado pelo país à propriedade da terra, o CLT pode florescer a partir de dinâmicas coletivas/comunitárias.
Apesar do seu reconhecimento e sucesso mundial, o modelo do CLT vem sendo aplicado de forma diversa no Norte e no Sul Global, em um diálogo direto com as diferenças inerentes às práticas coloniais de exploração, posição no sistema capitalista mundial e resistências ancestrais coletivas.
No Norte Global, os CLTs se caracterizam como uma solução para a garantia da acessibilidade da moradia voltada para novas construções destinadas a uma classe média baixa. Apresentam um caráter um pouco mais burocrático, avançando na garantia legal da acessibilidade, embora com dificuldades de desenvolver a dimensão comunitária e de autogestão que potencializa o modelo.
Já no Sul Global, o modelo do CLT vem sendo apropriado como ferramenta de luta de movimentos sociais e grupos urbanos vulnerabilizados por moradia e melhorias territoriais. O modelo vem, portanto, se identificando com movimentos de resistência à individualização da propriedade e tratamento da moradia enquanto mercadoria, a partir de uma perspectiva de (re)comunalização da terra em resgate à cosmologia ancestral dos povos colonizados.
Assim, em que pese a importância global inegável do modelo, sua aplicação no Sul Global aprofunda as possibilidades de sua utilização a partir de uma perspectiva comunal contra hegemônica, sendo fundamental a ampliação de seu debate e conhecimento entre investigadores, técnicos, lideranças e movimentos sociais em toda a região.
Nota sobre a autora
Tarcyla Fidalgo é advogada e planejadora urbana, militante pela moradia e assessora de movimentos sociais. Sua linha de pesquisa principal é de economia política fundiária e comuns urbanos, com ênfase no modelo dos Community Land Trusts. Más arículos de la autora en Crítica Urbana.
Para citar este artículo:
Tarcyla Fidalgo Ribeiro. O resgate dos comuns da terra a partir dos Community Land Trusts. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 7, núm. 34, Más allá del pensamiento hegemónico. A Coruña: Crítica Urbana, diciembre 2024.