Por Rubia Fernanda Panegassi dos Santos; Diamantino Pereira |
CRÍTICA URBANA N.8
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“A agricultura tem se apresentado nas últimas décadas como uma atividade cada vez mais comum em cidades onde a urbanização é acompanhada de altos níveis de pobreza, desemprego e insegurança alimentar. Iniciativas como a agricultura urbana e periurbana, tem sido estimuladas como estratégias para combater os problemas urbanos.”?
Entretanto, para a materialização da prática existe a necessidade de mudança do uso da terra. Assim, questionam-se as formas pelas quais o uso do solo urbano será orientado para a agricultura vinculada à solução dos problemas do crescimento das cidades.

Horta urbana sob linhas de transmissão na região de São Mateus, Zona Leste – São Paulo. Foto: Rubia Santos.
O acesso à terra para a implementação da agricultura nas cidades
Desde a década de 1990, a agricultura tem sido destacada em vários estudos e pesquisas enquanto prática exercida em pequenas propriedades e dentro dos limites das cidades, com destaque para as cidades localizadas em países de baixa renda da Ásia, África e da América Latina[1]. Essa agricultura, denominada geralmente como agricultura urbana e periurbana (AUP), pode eventualmente integrar um conjunto de estratégias cuja finalidade seja combater a pobreza e a insegurança alimentar.
No entanto, para a concretização desses objetivos, é preciso avaliar as formas de promover o uso do solo urbano com a atividade agrícola, tal como o acesso à terra pelos interessados em praticar a AUP. Considerando que um dos recursos essenciais e ao mesmo tempo escassos para a agricultura é o acesso à terra, a disponibilidade de terras para esse uso e/ou de recursos para a sua compra, são fatores que dificultam a atividade agrícola nas cidades. Portanto, nosso foco será a questão do acesso à terra.
No município de São Paulo, a AUP foi institucionalizada em 2004 com o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP), com o objetivo principal de incentivar uma prática que gerasse emprego e renda, combatesse a fome e promovesse a inclusão social.
A legislação do PROAURP destacava que o poder executivo deveria efetuar o levantamento das áreas públicas apropriadas para a implantação do programa, além de ser autorizado a firmar convênios com entidades privadas que desempenhem serviços de utilidade pública para a sua implementação.
O Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2002[2] acrescentou a agricultura urbana como uma das ações relacionadas ao planejamento territorial do município e se mostrou articulado com o PROAURP ao estimular usos da terra orientados para os objetivos do programa.
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O acesso à terra na zona rural e na zona urbana do município de São Paulo
Do ponto de vista político administrativo, as diferenças entre o que deve ser considerado urbano e o rural diz respeito a extensão dos serviços e equipamentos públicos, a densidade populacional e a dimensão das propriedades. Entretanto, a prefeitura de São Paulo, no âmbito do Programa Agriculturas Paulistanas, considera que na zona rural o uso do solo deve abrigar usos compatíveis com o desenvolvimento rural sustentável, ou seja, deve estar associado à ideia de criação de capacidades (humanas, políticas, culturais, técnicas etc.) que permitam às populações rurais agirem para transformar e melhorar suas condições de vida, através de mudanças em suas relações com as esferas do Estado, do mercado e da sociedade civil[3], onde as atividades agrícolas são consideradas como uma das alternativas adequadas, já que estão próximas das áreas de proteção ambiental.
Enquanto na Zona Sul encontra-se a maior parte da área agrícola do município e cerca de 400 produtores rurais, na Zona Leste existem 40 hortas, nas quais trabalham 79 famílias[4]. Algumas localizam-se em áreas públicas cedidas pelas prefeituras regionais e outras sob as linhas de transmissão de energia elétrica (Eletropaulo), adutoras da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp)[5]. Essas empresas cedem seus terrenos por meio do regime de comodato[6], que vincula a empresa ao produtor. Esse é o caso de muitos dos produtores que fazem parte da Associação dos Agricultores da Zona Leste (AAZL) com 14 hortas.

Horta urbana sob linhas de transmissão na região de São Mateus, Zona Leste – São Paulo. Recebe auxílio da ONG Cidades sem Fome. Foto: Rubia Santos
Por volta do ano de 2002, enquanto funcionários da Prefeitura Regional de São Mateus realizavam o mapeamento da rede hídrica e estrutural da região, foram identificados pequenos produtores agrícolas alojados em áreas sem caracterização de uso oficial. Esses produtores desenvolviam a agricultura de subsistência embaixo de linhas de transmissão de energia elétrica, chácaras e beiras de córrego. A descoberta serviu de estímulo para inserir os produtores, já em contato com a terra, em áreas viáveis para a produção, de forma a atingir os objetivos do PROAURP e garantir o reconhecimento oficial do poder público sobre o uso do solo.
Em 2014, a ONG Cidades sem Fome estabeleceu uma parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE), com objetivo de implantar o Projeto “Cidade sem Fome/Horta Comunitária”[7], com vistas a capacitar pessoas em situação de vulnerabilidade social na função de agricultores no município de São Paulo. Nesse caso, o apoio das ONGs é visto como complementar às iniciativas do poder público, que na maioria das vezes tem recursos limitados para as atividades de monitoramento e auxílio técnico das áreas agrícolas.
Além de contribuir para melhorar a infraestrutura das hortas, as ONGs também podem atuar como intermediárias entre o produtor e as empresas proprietárias dos terrenos, estabelecendo-se como responsáveis pelo contrato de comodato. Nesse cenário, observou-se que as produtoras da AAZL alteraram o tratamento dado à ONG, na medida em que essa passou a ser a comodatária, e portanto intermediária entre a empresa e o produtor. A ONG adquire então poder de coordenar as atividades dá área cedida.
Essa relação entre produtor e/ou ONG e empresa, embora realizada predominantemente com incentivo do poder público, também ocorre por meio do lançamento de projetos feitos pelas próprias empresas. O projeto da Eletropaulo, denominado Empreendedorismo Consciente[8], estimula a ocupação de seus terrenos com fins de auxiliar na inserção social, principalmente de pessoas em situação de vulnerabilidade social, na produção agrícola para a geração de renda e desenvolvimento de vocações. Em contrapartida, a empresa reduz os custos para a manutenção dos terrenos, ao mesmo tempo em que evita que se acumule lixo e entulho.
O poder público municipal tem perseguido o objetivo de estimular a atividade agrícola de baixo impacto ambiental, seguida da diretriz de incentivo à produção agrícola sustentável e outros usos que permitam a conservação ambiental. A região de São Mateus como um todo reconhece a presença de diversas áreas propícias ao desenvolvimento agrícola, localizada em terrenos da SABESP e da Eletropaulo, e promovem uma série de diretrizes que incluem o incentivo ao uso de terrenos cedidos (redes de energia e adutoras) para a produção agroecológica e o mapeamento de áreas de produção agrícola. Iniciativas como as descritas anteriormente, aumentam a visibilidade sobre os dados da região e facilitam o direcionamento de ações para atender aos objetivos do PROAURP.
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Os limites das iniciativas do Poder Público e o papel dos intermediários
As políticas públicas se mostraram meios importantes de atingir os objetivos do PROAURP, principalmente quando articuladas com o PDE, já que as áreas urbanas estão repletas de usos diferentes e, muitas vezes degradantes do ponto de vista ambiental. A articulação entre as legislações possibilitou o estímulo a novos usos do solo, como a atividade agrícola, por meio da delimitação territorial e de diretrizes que apontam ações para promover o desenvolvimento rural sustentável.
A análise evidenciou que, embora a legislação estruture os meios para a inserção da atividade agrícola no planejamento da cidade, a efetivação das políticas públicas depende de determinação política, e o que se tem notado ao longo dos anos é o desaparelhamento dos órgãos e estruturas administrativas para o apoio à denominada agricultura urbana preconizada pelo PROAURP com um mínimo de funcionários e técnicos e sem orçamento próprio.
Essa situação tem aberto o caminho para que as ONGs atuantes no setor, entre elas a Cidades sem Fome, seja de fundamental importância para a garantia de um mínimo de condições de trabalho e de segurança jurídica em relação às terras que os produtores utilizam para trabalhar e conseguir alguma complementação de renda e de alimentação.
Embora a iniciativa de ONGs seja importante para complementar o papel de auxílio aos produtores, emerge a questão relativa à autonomia dos produtores em seus estabelecimentos agrícolas, enquanto o terreno estiver sob responsabilidade jurídica da ONG. Tal questão envolve as cadeias de fornecimento, pois mesmo que a atividade agrícola seja realizada dentro da cidade e mais próxima do consumidor final, existe o risco de sujeição às regras das ONGs pelos produtores e sofrerem exploração econômica. Na medida em que existem intermediários na cadeia produtiva, mesmo que seja uma ONG, enfatiza-se a compreensão da complexidade das relações entre os sujeitos, assim como as contradições dessas relações, mesmo quando o acesso à terra esteja garantido.
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Referências
AAZL. Quem somos, 2019. Disponível em: <https://agricultoreszonaleste.org.br/quem-somos/>. Acessado em 15 abr 2019.
FAO. Criar Cidades mais Verdes. Viale delle Terme di Caracalla, Rome, Italy, 2012.
MACHADO, A. T.; MACHADO, C. T. de T. Agricultura Urbana. – Planaltina, DF: Embrapa Cerrados, 2002, 25 páginas.
SÃO PAULO (Município). 1ª Conferência Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável da Cidade de São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/ Acessado em 15 abr 2019.
[1] FAO. Criar Cidades mais Verdes. Viale delle Terme di Caracalla, Rome, Italy, 2012.
[2] SÃO PAULO. Lei nº 13.430, de 13/09/2002. Institui o Plano Diretor Estratégico e o Sistema de Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo.
[3] SÃO PAULO (Município). 1ª Conferência Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável da Cidade de São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/ Acessado em 15 abr 2019.
[4] SÃO PAULO. 1º Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – 2016/2020. São Paulo, jun. 2016. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/trabalho/ PLAMSANVERSAOFINALcompleta.pdf>. Acessado em 15 abr 2019.
[5] Departamento de Agricultura, 2018. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/desenvolvimento/abastecimento/agricultura_urbana/index.php?p=153588>. Acessado em 31/01/2019.
[6]Segundo Art. 579, Seção I Do Comodato, Capítulo VI Do Empréstimo: O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto. Fonte: BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002: Institui o Código Civil.
[7] SMDE (Prefeitura São Paulo). Operação trabalho – Cidades Sem Fome / Horta Comunitária, 2014. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento/cursos/operacao trabalho/index.php?p=173148>. Acessado em 15/04/2019
[8] Eletropaulo. Relatório de Sustentabilidade 2017. Disponível em: <https://www.enel.com.br/ pr/quemsomos/iniciativas/a201701-ecoenel.html>. Acessado em 19/02/2019.
Nota sobre os autores
Rubia Fernanda Panegassi dos Santos é Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP). Graduação no curso de Gestão Ambiental. Participa do Grupo de Estudos de Urbano-Ambientais e atualmente desenvolve a dissertação de mestrado nomeada: A Agricultura e a Cidade: os produtores agrícolas da Zona Leste de São Paulo.
Diamantino Pereira é Mestre em Geografia pela USP, Doutor em Ciências Sociais pela PUCSP, Coordenador do ProMuSPP e do Grupo de Pesquisa Agriculturas, Ambientes e Sociedade, Professor do Curso de Gestão Ambiental da EACH-USP
Para citar este artículo: Rubia Fernanda Panegassi dos Santos; Diamantino Pereira. Agricultura na cidade e questão fundiária. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.2 núm.8 Conflictos territoriales II. A Coruña: Crítica Urbana, Septiembre 2019. |