Por Gabriel Barth da Silva |
CRÍTICA URBANA N. 32 |
Linhas – uma breve história, do antropólogo Tim Ingold, permite, por suas qualidades criativas, sensíveis e sistemáticas, compreender diversos fenômenos da experiência humana a partir da história das linhas e de seus diversos usos. Publicado originalmente pela editora Routledge em 2007, o livro chegou ao Brasil apenas em 2022, pela Editora Vozes, com tradução de Lucas Bernardes.
Para Ingold, a pesquisa com as linhas possui diversos atravessamentos nas múltiplas trajetórias de vida, que, inclusive, também podem ser percebidas como linhas. Essa linha da trajetória de vida, porém, como as diversas no livro, não é percebida enquanto conexões de pontos nodais, com rigidez e diretividade entre eventos aparentemente relevantes. O que isso quer dizer? A vida das pessoas não apenas é caracterizada partir de eventos marcantes, como eventos centrais em que o resto é construído em torno, ou por uma sequência de eventos coerentes, que seriam pontos em que uma vida seria traçada por cima, gerando uma lógica ilusória, e apagando as diversas curvas que compõem uma vida. Pode ser feita a analogia dessa relação da trajetória de vida com as linhas a partir de uma malha, formada a partir do entrelaçamento, sobreposições, intersecções e conexões entre linhas compostas pelas diversas formas de vida.
Os diversos usos e presenças das linhas
Logo no início da obra, o autor ressalta como o projeto que ele apresenta está vinculado à tentativa de realizar uma “antropologia comparativa das linhas”. Atividades como andar, cantar, desenhar e até observar, de acordo com ele, procedem ao longo de uma linha. Seres vivos geram linhas e elas podem ser um campo de investigação. Busca-se nessa proposta entender como os humanos e os não humanos encontram seus caminhos, enquanto estão traçando eles ou encontrando um trajeto realizado no passado de Outro.
É reiterado por Tim Ingold como o colonialismo não impõe uma linearidade sobre uma não-linearidade, mas sim de uma linha sobre outra, um modo de perceber as linhas, com uma retidão empobrecida, contra linhas que possuem contornos, voltas, uma diferente vivacidade. O autor percebe como ir direto ao ponto é uma fantasia moderna, já que perambulamos sobre os pontos, nossos discursos são fluídos, os tópicos nos atraem e nos repelem, sem haver uma coerência tão reta quanto acreditamos. A modernidade europeia faz com que a retidão se torne o objetivo final de argumentação e de modo de pensar, que se associa, por sua vez, aos valores na civilidade em que ela imprime, em uma retitude moral.
A proposta, portanto, seria de tentar perceber outras formas possíveis de compreender os fenômenos da vida em suas diversas instâncias e experiências. Para observar outras experiências já vivenciadas em outros tempos-espaços, Ingold recupera os vínculos da música e a fala, tendo como consequência os vínculos da música com a fala escrita e da música escrita com a fala, refletindo desde a relação do povo medieval e sua percepção da palavra, em que a escrita falava. Isto se dá pois eles experienciaram as atividades de leitura e escrita de forma diferente da realidade moderna contemporânea, o que, necessariamente, ocorria a partir de outra relação com as linhas da escrita e sua relação com os sons e suas impressões psicológicas. A escrita nesse contexto não era um ponto final, um relato completo e objetivo dos ditos e feitos, mas caminhos de encontro com vozes do passado. A diferença na relação com a escrita se dá na distinção de uma navegação planejada em um mapa cartográfico ou por um andarilhar a pé, entre traçar um trajeto antes de partir ou de caminhar na companhia de outros reconstruindo o itinerário, descobrindo o caminho ao chegar.
Por esses caminhos tortuosos, de mudanças radicais e fluídas de argumentos, é que Tim Ingold constrói sua antropologia das linhas. Em metáforas, entre registros etnográficos, em descrições teóricas e em uma poética da experiência, compreendendo as diversas linhas que se dão e seguem livremente seu argumento da construção da retidão e da experiência da vivacidade de uma linha livre. Esse tipo de reflexão não se dá apenas em um nível teórico, abstrato, mas também na fluidez do argumento, com desvios inusitados, mas que, como o andarilho, permite-nos reconhecer seu propósito e seu objetivo ao chegar no final de suas páginas.
As linhas no território e sobre ser contra a retidão
Busco aproximar esta obra para a proposta do presente periódico, para que quem leia a Crítica Urbana possa pensar as linhas que compõem o seu cotidiano da mesma forma que elas inspiraram minhas próprias reflexões. Como no título deste breve artigo, acredito que pensar a partir das linhas pode reconfigurar nossas epistemologias, pois renova como pensamos a construção dos conhecimentos, reconfigurando o que percebemos enquanto constituinte do que é o “social”.
Para entender o potencial de pensar nas linhas, é necessário, como é proposto pelo autor, uma taxonomia das linhas. Linhas podem ser fios ou traços, sendo o fio o filamento de algum tipo, podendo estar ligado a outros fios ou suspenso entre pontos tridimensionais, tendo superfícies, como as plantas, os pelos, as artes da fiação, as redes e tendas, etc. Os traços são qualquer marca permanente deixada dentro ou sobre uma superfície, feitos a partir de um movimento contínuo, como o carvão ou o giz, o andar sobre um campo de grama, as linhas de visco de um caracol, entre outras. Linhas são também rupturas em superfícies, em rachaduras e vincos, como a linha de uma pá que corta o solo, no corte de uma folha, na casca de uma árvore. As linhas podem ser percebidas como fantasmas, nas linhas formadas por constelações no céu, pela linha do Equador, pelos rastros das linhas de música na cosmologia aborígene do continente australiano. Existem linhas que não se contentam em categorizações, podendo ser rastros de animais que não ficam na superfície, mas no odor que, carregado pelo vento, guia o caçador para a caça.
Esses diversos exemplos de Ingold, que cortam diversas direções ao longo do livro, geram diversas novas formas de perceber os fenômenos da vida. O território é formado por mais linhas do que as materiais, do que os mapas, do que pensamos na literalidade do espaço. Isso não se reduz, tampouco, ao simbólico, nos objetos culturais, mas também sobre outras linhas físicas que estão acompanhando às fantasmas, entre diversas outras que fogem às categorizações que nossas palavras dão conta. Em Linhas, a retidão do pensamento pode deixar de ser a única forma de pensar os argumentos e os caminhos em que a vida se dá. Com esse trabalho, os processos que constituem o cotidiano da vida ganham novas formas, formas muitas vezes mais interessantes que podemos refletir para criar um sentido mais criativo sobre os movimentos de humanos e não humanos ocorrendo simultaneamente historicamente, estabelecendo relações e constituindo a vida.
Este breve artigo não tem como dar conta do universo de possibilidades que são proporcionadas a partir da leitura de Linhas. Mais do que as associações em rede propostas por Bruno Latour, as linhas permitem conceber a vivacidade do movimento, além das marcas desses movimentos que alteram as experiências que queremos pensar e investigar. Isso só é possível em um esforço criativo que não busca atalhos e respostas rápidas, mas que nos convida para dar voltas e, talvez, inspirar um novo olhar sobre o mundo. Reitero a necessidade de se deparar com o livro enquanto alguém que andarilha, que não tem pressa para chegar, que não busca uma resposta final que possa ser aplicada em qualquer contexto e em qualquer lugar. Esperar um modelo aplicável seria destituir de toda a qualidade criativa que este livro nos dá, que é a de perceber os fenômenos como eles ocorrem no contexto em que estão, com sua historicidade, com suas curvas inusitadas, e com suas próprias propriedades.
A vida nas linhas e as linhas da vida
As linhas dos diversos seres vivos são formadas nos seus processos vitais, nas marcas que deixam no território, na cultura, no simbólico e no material, permitindo abandonar o olhar antropocêntrico para novas epistemologias, metodologias e olhares sobre os fenômenos que compõem nossa realidade. Das linhas da linguagem, da música e da notação, para os traços, fios e superfícies, pelas trilhas e rotas em mapas, pelas linhas que correm pelas árvores genealógicas, dos desenhos e da caligrafia, até os nossos processos modernos que buscam torná-la cada vez mais reta, as linhas vivas de Ingold inspiram meu trabalho, e, me inspirando em Italo Calvino, as Linhas de Ingold são um clássico para mim, pois elas nunca terminaram de dizer aquilo que tinham para dizer.
As Linhas de Ingold me permitiram trabalhar com a trajetória de vida das pessoas, não buscando uma coerência de eventos que resultam, no argumento bourdieusiano, em uma ilusão biográfica, com uma retidão que, na realidade, não faz parte do processo vital. Perceber a liberdade das linhas de vida, dos caminhos de cada pessoa que entramos em contato, de nossa vida enquanto essa linha que traça diversos contornos, me abriu possibilidades de reflexão e experiência de pesquisas que não havia vivido até então. As linhas estão no material e no simbólico, nas ruas e nas ideias das cidades, na interpessoalidade e no intrapessoal, e permitem, em uma qualidade teórica e poética, uma abertura para o interdisciplinar, entre as diversas linhas que compõem a dimensão da vida.
Nota sobre o autor
Gabriel Barth da Silva. Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Sociologia pela Universidade do Porto e Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. Atua principalmente em temas envolvendo práticas culturais e emoções.
Para citar este artículo:
Gabriel Barth da Silva. As vidas das linhas. A proposta de Tim Ingold para repensar as epistemologias. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales. Vol. 7, núm. 32, Lecturas para el pensamiento crítico. A Coruña: Crítica Urbana, junio 2024.