O CASO BRASILEIRO À LUZ DA POLÍTICA FUNDIÁRIA
Por Tarcyla Fidalgo Ribeiro
CRÍTICA URBANA N.4
Em dezembro de 2016, poucos meses após a interrupção democrática que se instaurou no Brasil com o golpe jurídico-parlamentar do qual foi vítima a presidenta Dilma Roussef, iniciou-se o processo de alteração do modelo de regularização fundiária nacional a partir da edição da Medida provisória 759/16 que, antes mesmo de passar por deliberação do poder legislativo, já revogava a legislação anterior sobre o tema e colocava em vigor um novo modelo de regularização fundiária no país. Após pouco mais de seis meses de trâmite legislativo, esta Medida Provisória foi convertida na Lei Federal n. 13465/17 que, apesar de ter incorporado algumas demandas de movimentos e organizações profissionais que atuam sobre o tema, promoveu mudança importante no modelo geral da regularização fundiária.
Esta mudança pode ser descrita, resumidamente, como a revogação de um modelo que compreendia a regularização fundiária como um processo amplo – que deveria conter aspectos urbanísticos, arquitetônicos, sociais e jurídicos – em favor de um modelo que privilegia de forma decisiva o aspecto jurídico-formal, permitindo que se promova regularização fundiária apenas a partir da titulação formal dos imóveis, deixando os demais aspectos (urbanísticos, sociais e econômicos) em segundo plano.
A regularização fundiária enquanto processo amplo era entendida como um instrumento de garantia de direitos para os moradores de terrenos irregulares, especialmente nas áreas urbanas, nas quais a irregularidade se encontra facilmente conjugada com a precariedade. No entanto, sua redução a um processo massivo de formalização jurídica dos imóveis retira este potencial, contribuindo para a manutenção de condições precárias nas cidades, inclusive com possibilidade de aumento de processos de expulsão mercadológica de populações vulnerabilizadas de áreas mais valorizadas do território.

Favela Indiana, situada na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Esta comunidade resistiu ao movimento de remoção forçada dos moradores no contexto dos megaeventos sediados pela cidade entre 2010 e 2016. Foto Tarcyla Fidalgo
Destaque-se que uma mudança no modelo de regularização fundiária tem potencial de impactar diretamente a própria estrutura fundiária no Brasil, visto que – apesar da ausência de dados oficiais – o próprio governo estima que mais de cinquenta por cento do território padeça de alguma irregularidade quanto à formalização do terreno.
Com este percentual de irregularidade, constituído historicamente em um território de dimensões continentais, a propriedade fundiária no Brasil adquiriu contornos heterogêneos, havendo diversos tipos de relação estabelecidas com a terra, não necessariamente em conformidade aos moldes capitalistas.
Neste cenário, uma primeira questão que se coloca é sobre o papel do Estado e a importância deste tema no cenário de ascensão de um governo menos ambíguo quanto ao seu alinhamento com uma ordem neoliberal internacional.
Como é sabido, o neoliberalismo prega intervenções estatais em favor dos interesses do capital (em sua etapa atual sob dominância das finanças). O controle destas intervenções se dá, principalmente, por duas vias:
(i) a interferência direta ou indireta de organismos internacionais, especialmente aqueles responsáveis por empréstimos e
(ii) a difusão de modelos que se apresentam como solução padrão para diversas questões, em muito associados a experimentos regulatórios, a partir de think-tanks (bases de produção de conhecimento à serviço dos princípios neoliberais espalhado pelo mundo, mas com atuação destacada nos países centrais).
A face econômica do neoliberalismo é a financeirização, aqui entendida como a prevalência do capital financeiro sobre a esfera produtiva, além do processo de capilarização da lógica financeira em diversos setores econômicos e relações sociais, especialmente nos últimos vinte ou trinta anos .
Esta capilarização vem atingindo também o espaço urbano e as políticas a ele destinadas, sendo que, nas últimas décadas, é inegável o reconhecimento de que as cidades, em especial as metrópoles, vêm se transformando de forma acelerada e conforme o “ritmo” das finanças . Estas transformações podem ser identificadas em níveis e graus distintos, relacionadas à construção civil, infraestrutura e terra urbana.
Quanto a este último aspecto, no que se refere à mudança no modelo de regularização fundiária brasileiro, esta se encontra sob o auspício de ambos os mecanismos descritos anteriormente de interferência internacional e interiorização de modelagens elaboradas em think-tanks. Isto porque o novo modelo se baseia amplamente na doutrina da governança de terras, difundida como solução em termos de controle territorial a partir do enfoque em registro cartorial e georreferenciamento, introduzida no país pelo Banco Mundial, como uma de suas “recomendações” cujo cumprimento interfere na avaliação do país.
Parece claro que o novo modelo de regularização fundiária adotado no Brasil, em conformidade com a doutrina da governança de terras, pretende, sobretudo, homogeneizar a propriedade fundiária sob o regime da propriedade privada individual, ao privilegiar a titulação por essa via e a formalização registral e georeferencial em relação a medidas de melhoria territorial e social dos moradores destas áreas.
Esta modelagem, apresentada como solução para o controle territorial e atualmente incorporada na nova legislação de regularização fundiária brasileira, se mostra importante para a capilarização e desenvolvimento da financeirização no país, na medida em que expande as fronteiras de possibilidades de acumulação capitalista – ao incorporar grandes quantidade de terra no mercado – e garante maior segurança para o cada vez maior número de especuladores que negocia a partir da terra urbana sob uma lógica financeirizada.
De fato, a terra urbana tem se tornado uma opção cada vez mais relevante para investidores e especuladores. O quantitativo crescente de habitantes em cidades no mundo, e o consequente crescimento de sua importância para a organização e circulação do capital, tem direcionado a atenção do capital para as cidades seja pela via produtiva, seja pela especulativa.
Segundo Harvey (2015), o investimento em infraestruturas urbanas pode ser uma saída ótima para crises de sobreacumulação, típicas do capitalismo e agudizadas por um modelo de acumulação baseado em ativos financeiros. Isto porque, ao mesmo tempo em que seria capaz de absorver grandes quantidades de capital e mão de obra por um período prolongado de tempo, poderia preparar estruturas para um ciclo de acumulação futuro.
Pela via especulativa, assistimos a um crescimento relevante, em nível mundial, de títulos securitizados baseados na terra urbana, bem como de fundos imobiliários que atuam nas cidades sob a lógica financeira da valorização acionária e maximização do lucro no menor prazo de tempo possível.
Levanta-se a hipótese de que, no Brasil, estes mecanismos de capilarização da lógica capitalista sob dominância financeira nas cidades encontram-se prejudicados pela falta de homogeneidade jurídico-formal da propriedade privada devido ao histórico de irregularidade fundiária no país.
A partir desta hipótese, seria possível estabelecer uma base explicativa para o fato do tema ter se tornado prioritário no momento de ascensão ao poder de um governo menos ambíguo quanto ao seu alinhamento com os interesses neoliberais e financeiros internacionais.
Deste modo, a edição da Medida provisória 759/16, posteriormente convertida na Lei 13.465/17 parece ter como objetivo atender a esta demanda pela homogeneização do regime jurídico de todo o território nacional a partir do modelo da propriedade privada plena capitalista, de modo a constituir uma fonte de expansão e base financeira para o capital, em um movimento, que vem se mostrando mais agudo e menos ambíguo, de integração do Brasil na lógica da acumulação financeirizada que já se mostra dominante no cenário internacional.
Para mais informação:
CHRISTOPHERS, Brett. Revisiting the urbanization of capital. In: Anals of the association of american geographers, 2011.
DURAND-LASSERVE, Alain. Regularization and integration of irregular settlements: lessons from experience. Nairobi: World Bank, 1996.
ROLNIK, Raquel. A Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
Para citar este artículo: Tarcyla Fidalgo Ribeiro. Capitalismo sob dominância financeira. o caso brasileiro à luz da política fundiária. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.2 núm.4 La Propiedad. A Coruña: Crítica Urbana, enero 2019. |