Por Igor Gonçalves Queiroz |
CRÍTICA URBANA N.30 |
Através de práticas rebeldes e desestruturadoras da ordem urbana, as crianças, constantemente associadas a seres estranhos ou selvagens na cidade, é observada pelos fotógrafos, educadores, arquitetos e urbanistas e, como um enigma, desvia o seu olhar e também nos observa.
Na cidade de São Paulo dos anos 1930, pretendeu-se a construção de um ideário moderno brasileiro, baseado na manutenção de uma noção moderna, adulta e europeia de infância [do latim, in, ‘não’, e fans, fantis, do verbo fari, ‘falar’, ‘ter a faculdade da fala’. infans, infantis, ‘que não fala’], observada no projeto do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, chefiado pelo escritor modernista Mário de Andrade. É o debate entre esta narrativa urbana, relacionado a outras possibilidades de infâncias ou outros modos de ser criança no Brasil, que nos possibilita questionar e experimentar outros modos de pensar, fazer e narrar histórias dos modernismos e da modernização das cidades brasileiras. A criança, como possível construtor de articulações entre distintos saberes, discursos e práticas heterogêneas, ajuda-nos a romper barreiras, sobretudo em formas já cristalizadas da construção historiográfica das nossas cidades.
Je n’entends pas votre langage
Je refuse un autre cerveau dit l’enfant
l’enfant sauvage.
Jacques Prévert
Crianças e urubus
Num depósito de lixo a céu aberto, um homem trabalha em meio aos urubus. Tal qual aqueles animais, a cena é sobreposta por um grupo de meninos revirando o lixão, e gestos sincronicamente mecanizados revelam a simulação de uma cena cotidiana ou mesmo “bem estranha” de um daqueles “lugares desertos que pouca gente sabe onde fica”, como afirma a voz em off do narrador. A encenação é do ano de 1954 e foi filmada no bairro de Pinheiros, por Benedito Junqueira Duarte, que produziu cerca de 2.700 fotografias e mais de 500 filmes e documentários sobre as transformações urbanas da cidade de São Paulo.
O pequeno documentário a que nos referimos intitula-se “Parques Infantis da cidade de S. Paulo”[1] e foi produzido pelo Departamento de Cultura da cidade, órgão fundado em 1935 pelo então prefeito Fábio Prado com o intuito de abranger todo o movimento educacional, artístico e cultural, a partir de quatro divisões principais: Expansão Cultural; Bibliotecas; Educação e Recreios; e Documentação Histórica e Social.
Nos bastidores dessa institucionalização da cultura urbana, atuavam intelectuais cujas vidas públicas iniciaram-se na Semana de Arte Moderna de 1922. Para citar alguns: Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Sérgio Milliet e, destacamos aqui, a figura de Mário de Andrade como diretor do Departamento e chefe da Divisão de Expansão Cultural. Desse modo, este poeta, romancista, professor de música, crítico de arte e pesquisador, foi também servidor público e o Departamento que chefiou entre 1935 e 1938 abrigava ações de Assistência Social, Esportes, Lazer, Turismo, Estatística e Planejamento, Meio Ambiente, tudo o que se pudesse classificar sob o viés da educação.
A proposta se inseria nas ambições do Partido Democrático de conduzir à Presidência da República Armando de Sales Oliveira, governador do Estado de São Paulo e, inicialmente, fazer do Departamento de Cultura o protótipo de um Instituto Paulista de Cultura, um projeto político da elite paulistana, que serviria de modelo a um futuro Instituto Brasileiro de Cultura. Mário de Andrade via no acesso à cultura de elite um meio eficaz de suplantar o atraso intelectual e político dos mais pobres. O crescimento da candidatura de Armando de Sales Oliveira à presidência durante o ano de 1937, com perspectiva de ser eleito no ano seguinte, precipitou o golpe do Estado Novo, deflagrado por Getúlio Vargas. Mudou-se completamente o cenário político em São Paulo, com a inevitável substituição do prefeito Fábio Prado pelo engenheiro e urbanista Prestes Maia, “um técnico insensível – e hostil – às ‘brincadeirinhas’ do Departamento de Cultura”[2].
Automóveis e bois
A cena que se segue no mesmo documentário dos Parques Infantis é barulhenta. Enquanto uma algazarra de meninos joga bola num terreno baldio da grande cidade, o narrador as compara a “pequenos animais”, ou “filhotes de homens”, que estão sempre à procura de um espaço onde possam expandir-se livremente. A construção da imagem desta criança selvagem ou mesmo de uma certa selvageria das suas brincadeiras na metrópole talvez sintetize bem o que era e o que pretendia ser a São Paulo no auge do seu desenvolvimento econômico nas primeiras décadas do século XX. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss fotografou nos anos 1930, o que ele chamou de “o encanto da cidade”: o choque temporal existente entre a imagem de um bonde elétrico sendo retardado por uma boiada assustada por buzinas de automóveis. Nos relatos de Mário de Andrade deste mesmo período, é esta a cidade que ele também estranha:
Disseram-na fria e feia um dia, e São Paulo era feia encafuada em seus grotões. Mas São Paulo quer-se bonita e higiênica para que o viajante não venha mais encontrar nela apenas sapo, gripe e solidão. Os grotões transformaram-se em jardins cortados ao meio pelas avenidas e pela sombra dos viadutos. Não há mais sapo. Nos jardins encontrareis recintos fechados com instrutoras, dentistas, educadoras sanitárias dentro[3].
A esta cidade feia e desordenada, habitada por sapos e tomada por grotões, sobrepõe-se grandes avenidas, altos viadutos e rios canalizados, numa São Paulo que encontra-se num processo de modernização caótico e acelerado. Era preciso, portanto, disciplinar a população desta cidade em pleno desenvolvimento. Mais que isso, era preciso transformá-la culturalmente e educá-la a partir do urbano e o principal meio para se atingir este fim, todos já sabemos, eram as crianças. Não à toa, a cena do futebol dos meninos do documentário encerra-se tragicamente com um deles sendo atropelado por um automóvel, quando corre para pegar a bola na rua.
A formação cultural infantil paulistana deste período deu-se de modo assistencial e paternalista, através de instituições e equipamentos públicos como Parques Infantis, o Teatro Municipal, o Arquivo Municipal e o Serviço de Diversões Públicas, além de bibliotecas populares de bairro ou das “Bibliotecas Circulantes”, as caminhonetes que partiam em busca do público. A cidade que entre 1910 e 1934 passou de 375 mil para mais de um milhão de habitantes, sendo destes últimos quase 300 mil de origem estrangeira, se utilizou destes meios para educar uma população imigrante considerada desenraizada de uma cultura genuinamente brasileira, “na pretensão ambiciosa de tudo saber sobre o Brasil […], levando o livro a casa dos homens sem vontade ou experiência”[4].
Com atuação efetiva sobre as crianças, investiu-se no amparo dos considerados “futuros cidadãos”, que deveriam crescer física e moralmente, sob a orientação e fiscalização de educadoras inflexíveis[5]. O descanso da mente, como uma ideia de formação de uma mentalidade intelectual, era intensificado por atividades tranquilas e pedagogizantes: modelagem, desenho, plantação e manutenção da horta do parque, carpintaria e marcenaria, leitura de histórias infantis ou lição prática de coisas e da vida coletiva, através de cinema dramatizações, palestras etc. Atividades que, segundo o narrador do filme, seriam capazes de manter sempre vivo o pequeno espírito em formação, “numa terra preparada para receber a semente boa ou má”. E com esse discurso de cunho eugenista e progressista, cuidava-se no Parque Infantil para que nesse chão apenas caísse “o bom prenúncio de fartas colheitas”.
Mapas e polvos
Esquadrinhar a cidade, conhecer os padrões de vida da população, especialmente dos seus operários, para então planejar ações de intervenções urbanas. Foi com este objetivo que o Departamento de Cultura, em colaboração com a Universidade de São Paulo e a Escola de Sociologia e Política realizou cerca de dez pesquisas que tinham como objetivo, em sua maioria, coletar dados como densidade populacional, origem, sexo, idade, estado civil e profissão. Estava criado, então, um laboratório de investigações científicas, com fins de observar a cidade de São Paulo como num microscópio[6].
Amparados sempre numa perspectiva de planejar o futuro da cidade, “feito um polvo, as pesquisas sociais tudo abarcam com uma audácia incomparável que permitirá muito breve à cidade conhecer-se em todas as suas condições, tendências e defeitos”[7]. Por meio de pesquisas sociais e etnográficas que detectassem problemas na alimentação, moradia e educação, observa-se na análise dos dados obtidos um viés extremamente moralista do Departamento. Na opinião dos pesquisadores,
a tarefa presente é de ensinar e guiar os alunos, filhos de pais estrangeiros, de modo a tornarem-se cidadãos brasileiros, úteis e leais […] Tal tarefa se torna mais difícil, dado ao fato de uma porcentagem considerável de crianças viver em meios estrangeiros ou semi-estrangeiros, desfavoráveis à cidadania eficiente[8].
Assim, após uma das primeiras pesquisas realizadas pelo Departamento de Cultura, acerca da alimentação da população, detectado o alto índice de subnutrição entre a população operária de São Paulo, em virtude dos altos preços dos alimentos, sobretudo de proteína e do hábito da população em não consumir verduras e legumes, o Departamento de Cultura começou uma campanha de distribuição diária de um copo de leite para as crianças que frequentam os Parques Infantis.
Se voltarmos ao documentário de B.J. Duarte, notamos como as refeições servidas às crianças são consideradas uma espécie de “combustível ao funcionamento dessa máquina complexa que é o organismo de um garoto”. Vemos, ainda, que atividades como o banho de piscina são vistas não apenas como um elemento de sociabilidade, mas como um exercício para o físico, algo que se tornaria muito útil na idade adulta, “desenvolvendo-se o espírito esportivo e o senso de humor, tão necessários mais tarde na luta pela vida cotidiana”. Aliado à dimensão educacional intelectual, nos deparamos com a valorização das inúmeras atividades físicas e de lazer, da higiene e do cuidado médico, com intuito de manter corpos e mentes sãs. A criança é vista, sobretudo, como uma espécie de “pequeno operário”, não como um sujeito de direitos, a partir do que ela é no presente, mas sempre a partir da projeção de um futuro determinado; de um vir-a-ser cidadão útil e produtivo.
Esses seres estranhos e selvagens
“As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua”[9]. Elas são como enigmas na cidade, são o desconhecido, como sujeitos e como itinerários. Ao nos darmos conta de que são múltiplas as infâncias existentes nas cidades e tempos distintos, percebemos como a noção de infância, já tão consolidada nas áreas de estudo sobre a criança, carece, ainda, de uma certa relativização, ao se perceber como diferentes culturas lidam com estes sujeitos sociais e de direito, sobretudo no Brasil.
Tanto no caso da São Paulo da década de 1930, quanto na contemporaneidade, as crianças ditas “perigosas” para a sociedade, geralmente as mais pobres, as que não seguem o ideal imposto pela normatização, são aquelas que a sociedade não consegue calar e domesticar os corpos. O conhecimento produzido pelas ciências também não consegue assimilar e admirar a liberdade na criança e suas inesperadas e surpreendentes atitudes, preferindo uniformiza-las e imobilizá-las, determinando condutas esperadas e adequadas, segundo uma classificação normatizadora. Esta criança, considerada um perigo para a cidade, pode ser a chave para respostas de diversos impasses das nossas cidades.
________________
Informações adicionais:. Este debate é parte da discussão da pesquisa de Doutorado, intitulada “Imaginação e recreação infantil: relações entre ideário político, política e prática urbanística no Brasil entre 1930-1960” https://www.laboratoriourbano.ufba.br/?pesquisas=doutorado-12. O tema da criança e da cidade foi abordado na pesquisa de Mestrado, “Brinquedo e brincadeira: fabulações entre criança, cidade e urbanismo” <laboratoriourbano.ufba.br /?pesquisas=mestrado-6>; e no Trabalho Final de Graduação, “Labirinto, brinquedo, brincadeira: o uso da cidade pela criança como crítica ao ideário moderno” https://www.laboratoriourbano.ufba.br/?pesquisas=tfg
Notas
[1] Parques infantis da cidade de S.Paulo. Direção de Benedito Junqueira Duarte. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo; Secretaria de Educação e Cultura; Departamento de Educação, Assistência e Recreio, 1954. (10 min.), son., P&B.
[2] CALIL, Carlos Augusto; PENTEADO, Flávio Rodrigo (Org.). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura: textos e entrevistas de Mário de Andrade, Fábio Prado, Oneyda Alvarenga et al. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015, p. 16
[3] “Dia de São Paulo”. In: Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. XIX, jan. 1936, p. 273.
[4] Ibid., p. 273.
[5] Importante perceber o caráter de gênero na formação das ações do Departamento de Cultura. Enquanto as educadoras eram todas mulheres e exerciam as funções relacionadas ao cuidado e educação das crianças, os profissionais de saúde (médicos, dentistas, sanitaristas) eram homens. Também nas fotografias de B. J. Duarte, notamos as divisões de tarefas e brincadeiras específicas para meninos (brinquedos de construção) e de meninas (bordados), por exemplo.
[6] O termo faz referência a uma das principais pesquisas realizadas, São Paulo au miscroscope, um levantamento das categorias citadas anteriormente, dividindo a cidade por quarteirões.
[7] “Dia de São Paulo”. In: Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. XIX, jan. 1936, p. 273.
[8] “Ensaio de um método de estudo da distribuição da nacionalidade dos pais dos alunos dos grupos escolares da cidade de S. Paulo”. In: Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. XXV, jan. 1936, p. 234.
[9] LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 6. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 229.
Nota sobre el autor
Igor Gonçalves Queiroz. Designer Gráfico (Universidade do Estado da Bahia, 2011), Arquiteto e Urbanista (2015), mestre (2018) e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia. Membro do grupo de pesquisa Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA).
Para citar este artículo:
Igor Gonçalves Queiroz. Infâncias selvagens na cidade. O Departamento de Cultura de São Paulo-SP, Brasil 1935-1938. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.6 núm. 30 Ciudades, infancias y juegos. A Coruña: Crítica Urbana, diciembre 2023.