Por Júlia Silveira |
CRÍTICA URBANA N. 33 |
O território indígena brasileiro sofre com um processo de revisionismo histórico. O discurso da colonialidade, entendida como relação hierárquica de dominação que se perpetua após o suposto fim do colonialismo, atua sob a memória das cidades.
Cidades com história indígena e moldadas por suas práticas passaram por um marketing urbano, o qual busca desassociar essa história milenar com seus territórios. Novos projetos de cidade são instalados, visando a utilização do território como dispositivos de produção capitalista. Nesse conflito pela identidade das cidades e de suas memórias, são contrapostas às comunidades indígenas e suas cosmovisões a lógica do progresso econômico máximo.
A Colonialidade atuando na memória das cidades
O Planejamento Urbano no Brasil atua sob um consenso: a modernização das cidades brasileiras. A urbanização é tida no país como sinônimo de modernidade, associando-se às capitais européias. Em contrapartida, a camada mais pobre da população brasileira é valorizada negativamente como o antimoderno. Historicamente, os instrumentos de Planejamento Urbano, para serem legitimados, precisam argumentar seu caráter modernizante. O avanço da modernidade implica na manutenção da colonialidade: a população indígena, vista como improdutiva e impeditiva de progresso econômico, tem seu território explorado. Essa violência é justificada através de narrativas que apagam a memória indígena, subjugando-a, desassociando-a dos territórios. Isto pode ser percebido em monumentos históricos, que trazem a representação indígena como algo associado ao passado e a ser superado.
A Terra Indígena Xokleng Laklãnõ e a gestão da Barragem Norte
Um conflito recente que expressa como a gestão das cidades atua perpetuando relações de dominação é o da Barragem Norte, no segundo semestre de 2023. O conflito ocorreu no estado de Santa Catarina, no Sul do Brasil, originalmente habitado por grupos tupi-guarani. Na segunda metade do século XIX, o governo brasileiro incentivou a migração europeia, fruto das políticas de embranquecimento. O governo estadual, que controla a Barragem, permite a inundação de terras indígenas milenares. A narrativa justificadora utiliza-se de uma lógica utilitarista de proteção do desenvolvimento econômico.
A Barragem Norte se localiza no município de José Boiteux (v. mapa). É a maior barragem desse estado. Ela atua na contenção de enchentes na região do Vale do Itajaí. A Barragem foi erguida nos limites da Terra Indígena Xokleng/Laklãnõ, na década de 1970. Seu lago de contenção ocupou um território antes habitado pelos povos indígenas Xokleng e Kaingang. Ela se insere em um contexto de grandes obras de infraestrutura urbana que foram feitas sem a consideração dos impactos para as comunidades vulnerabilizadas que ali estavam. O objetivo foi resguardar de desastres cidades mais próximas à foz do rio de maior produtividade econômica, como Blumenau.
Em outubro de 2023, pela primeira vez, a Barragem Norte atingiu sua capacidade máxima e a água extravasou o vertedouro. Os moradores da região da estrutura defendiam sua abertura, com medo que a barragem não suportasse as chuvas que ainda estavam por vir. Deflagrou-se um conflito entre a população local, apreensiva com as consequências ambientais locais do fechamento, e as autoridades, que agiam em nome da defesa de cidades maiores, mais economicamente importantes, mantendo a Barragem Norte fechada. O confronto resultou no atingimento de três indígenas com balas de borracha
Em Blumenau ocorre um evento turístico de celebração da cultura européia que atrai muitos investimentos em outubro. A Oktoberfest Blumenau é uma festividade da cultura germânica inspirada no evento homônimo original em Munique, na Alemanha, e é considerada a maior festa alemã das Américas. A adoção da identidade europeia é tamanha que uma parte do Vale do Itajaí faz campanhas publicitárias adotando o nome “Vale Europeu”.
O apagamento da história indígena dos territórios autoriza a criação de outra identidade. A construção dessa identidade é baseada na branquitude, reduzindo a população à memória europeia, atrelado ao apagamento da memória indígena e da violência sofrida e perpetuada até hoje. O discurso da Colonialidade perpetua essa hierárquica, infiltrando-se no território de diversas formas – Blumenau está entre as cidades com maior número de agrupamentos neonazistas do Brasil.
A gestão urbana (des)legitimando narrativas de memória
As cidades, além de concentrarem atividades e pessoas, tornam-se âmbitos de resposta aos propósitos econômicos, políticos e culturais. Essas tentativas de apropriação do território para resoluções políticas e econômicas competem entre si. Correntes que entendem o objetivo do Planejamento Urbano como crescimento econômico propõem projetos de cidade modernizantes, se estabelecendo como legitimador de processos de produção de desigualdade espacial.
As histórias das cidades, objetos de disputa, informam a gestão urbana. As políticas de desenvolvimento urbano não são neutras e subjugam práticas já existentes, privilegiando as que geram maior crescimento econômico e a modernização das cidades. Nessa dinâmica, comunidades com outras cosmovisões têm seus direitos vulnerabilizados, como na gestão da Barragem Norte. Essa vulnerabilização deve ser entendida como processo, viabilizada a partir de procedimentos que trabalham em sua manutenção e reprodução. A legitimação da produção dessa vulnerabilidade ocorre através de discursos de apagamento da relação desses grupos com seus territórios.
A recuperação da memória indígena das cidades se articula com a legitimação de formas de vida que não são as hegemônicas e seu direito de existência. Os Lakãnõ-Xokleng sofreram com a dizimação do seu povo por parte de colonizadores, com a tomada de parte do território que habitavam para a construção de infraestrutura para contenção de enchentes e sofrem com sua gestão governamental que prioriza outras formas de vida. Hoje, sua forma de vida e território também são ameaçados pelo marco temporal das terras indígenas – uma tese jurídica que legitima a desapropriação de terras ocupadas por indígenas brasileiros caso elas não estivessem por eles empossadas na data da promulgação da Constituição brasileira de 1988. Na época, os Lakãnõ-Xokleng já haviam sido expulsos de parte do seu território para a construção da Barragem Norte.
A memória dos territórios está continuamente em disputa. As narrativas em relação aos povos indígenas não devem ser tomadas como um consenso. A necessidade do uso de força até hoje para conter manifestações demonstra a perpetuação do conflito e a reprodução da lógica colonial, a qual foi dita superada. Essas narrativas podem ser transformadas e ressignificadas a partir da resistência dessa comunidade no território, criando novos sentidos à cidade. Relatar esse conflito é manter viva a disputa por essa memória e dimensiona-lá nas narrativas que o Brasil conta de si, além de possibilitar a sobrevivência e a continuidade da reivindicação de outras existências.
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Para saber mais o video Laklãnõ/Xokleng – Os Órfãos do Vale (Andressa Santa Cruz e Clara C. de Souza 2018)
Nota sobre a autora
Júlia Silveira. Arquiteta pela Universidade Federal do Paraná (2023). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da mesma Universidade, na qual é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Investiga temas acerca de insurgências urbanas, participação social e habitação.
Para citar este artículo:
Júlia Silveira. Territórios da violência contra a memória indígena no sul do Brasil. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 7, núm. 33, Memoria y ciudad. A Coruña: Crítica Urbana, septiembre 2024.