Por Fabiola Cordovil
CRÍTICA URBANA N.3
O Estado alinhado ao mercado imobiliário é fato recorrente na política urbana brasileira. A proximidade entre ambos é frequente nas ações públicas na área urbana em municípios no Brasil. As situações são diversas e os exemplos são inúmeros, atingindo tanto as metrópoles quanto cidades médias, e tanto cidades de formação mais antigas quanto as de formação mais recente.
Comentamos sobre a atuação dos interesses do mercado imobiliário sobre a área pública, refletindo na possibilidade de sua privatização por meio de um dos instrumentos do Estatuto da Cidade, a Operação Urbana Consorciada, evidenciando o desvirtuamento do instrumento num caso específico, qual seja, a proposta de intervenção urbana denominada inicialmente de Projeto Eurogarden, que foi veiculado nos meios de comunicação a partir de 2011 como símbolo de progresso e de modernidade na cidade de Maringá, no estado do Paraná, Brasil.
Demonstramos como uma representação ao Ministério Público figurou como resistência ao denunciar as irregularidades da lei encaminhada pelo executivo municipal que aprovou o Projeto Eurogarden como a Operação Urbana Consorciada Novo Centro Cívico-Eurogarden no ano de 2013. Em 2018, finalmente, a lei foi revogada por solicitação do empreendedor diante das flagrantes divergências em relação à lei federal, Estatuto da Cidade, salientando o protagonismo dos interesses privados na política urbana.
Evidenciamos, nesta breve explanação, a trajetória dessa proposta da iniciativa privada e sua associação ao executivo municipal que, apesar das suas incoerências legais, encaminhou a lei para aprovação na Câmara Municipal, e a sua revogação, que teve o seu fundamento na denúncia encaminhada ao Ministério Público por docentes de instituições de ensino superior da cidade, embora cinco anos depois da lei aprovada.
A cidade moderna e o projeto novo
A cidade de Maringá caracteriza-se por ser de fundação relativamente recente, pois conta com 71 anos de existência atualmente e foi criada a partir de um plano moderno, vinculado a uma estratégia privada de ocupação regional em uma área de mais de 515 mil alqueires (o que corresponde a 1.246.300 hectares), na qual não havia ocupação urbana anterior. A cidade teve um papel de polo regional, inserida num dos pontos de um eixo rodoferroviário de penetração territorial, fazendo parte da propriedade da empresa que urbanizou a região.
Contando com um significativo dinamismo econômico, Maringá rapidamente ampliou sua população e seu território urbano, e, atualmente, possui 417.010 habitantes (IBGE, 2018). Com uma taxa de crescimento populacional de 2,15%, o município recebeu mais de 10 mil habitantes de 2017 para 2018 (IBGE, 2018). Como as demais cidades brasileiras dinâmicas, frentes de expansão imobiliária vêm se constituindo sucessivamente, seja ampliando o perímetro urbano, seja substituindo antigas funções urbanas. Na área do plano inicial da cidade, grandes áreas tornaram-se ociosas devido à transferência das atividades originais, como a área do antigo aeroporto.
Na área do antigo aeroporto (ver figura 01), no ano de 2011, o Projeto Eurogarden foi contratado e apresentado por um empresário local e, em 2013, estabeleceu-se como Operação Urbana Consorciada, pela Lei Municipal no 946/2013. Todavia, antes mesmo de se transformar em lei, a proposta foi apresentada pelo executivo municipal em diversas ocasiões, numa clara demonstração de promoção e defesa dos interesses privados pelo agente público.
A área do Projeto Eurogarden integrou ao terreno particular do empreendedor, de aproximadamente 75 hectares, o terreno vizinho, constituído por uma área pública de propriedade da União, com aproximadamente 80 hectares, onde funcionou o antigo aeroporto de Maringá e que hoje está desativado.
O aeroporto foi transferido para outro lugar e grande parte da área em que se implantava encontra-se sem uso. Todavia, alguns edifícios de caráter público implantaram-se no local, como o Tribunal Regional do Trabalho – TRT, o Tribunal Regional Eleitoral – TRE, além de contar, na época do projeto, com o edifício da atualmente extinta Secretaria Municipal de Trânsito e Segurança que se estabelecia no prédio do antigo aeroporto. No Projeto Eurogarden não é possível identificar essas instituições públicas e entendemos que não foram consideradas.
O Projeto Eurogarden incidiu sobre uma área de aproximadamente 155 hectares e sublinhou o evidente interesse comercial do agente privado, proprietário de um pouco menos da metade da gleba para a qual se fez a proposta. Ao contratar às suas expensas o escritório francês Archi5 para elaborar o projeto para a área, o empreendedor privado parece preocupar-se exclusivamente com o sucesso imobiliário do seu empreendimento. Sobressaem, nas imagens divulgadas do projeto, a eliminação total dos edifícios públicos, ao mesmo tempo em que destacam os grandes edifícios, como shoppings centers e prédios residenciais de luxo.
De Projeto urbano privado à Operação Urbana Consorciada
As Operações Urbanas Consorciadas – OUCs -ocorrem no Brasil desde a década de 1980, mas foi a partir do Estatuto da Cidade, Lei Federal no 10.257/2001, que se estabeleceram conforme o direito à cidade, e de acordo com as diretrizes de justa distribuição do ônus e do bônus da urbanização, da função social da cidade e da propriedade, e da gestão democrática participativa, principalmente.
As OUCs são instrumentos que visam à transformação estrutural de uma determinada porção da cidade, em uma parceria público e privada, com envolvimento, desde sua concepção, dos moradores, proprietários, investidores e demais envolvidos. Os incentivos urbanísticos são as principais formas de contrapartida que atraem os investimentos privados. Tais incentivos referem-se à flexibilização dos usos, índices e normas edilícias. As intervenções urbanas a partir das OUCs devem fazer parte da política urbana municipal, de acordo com os objetivos do Plano Diretor. Portanto, uma OUC no Brasil deve ter como principais marcos legais o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor Municipal e a lei específica da OUC.
Para viabilizar o projeto, o executivo municipal encaminhou a alteração no zoneamento na legislação urbanística, definindo a área como ZE-23 (Zona Especial 23 – Eurogarden). A mudança na legislação para a implantação do projeto na área do antigo aeroporto foi questionada na época por conselheiros representantes do órgão colegiado da política urbana municipal, o Conselho da Cidade, denominado de Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial (CMPGT).
Todavia, as tentativas de adequar o projeto às normas legais tiveram prosseguimento. Diante da flagrante ilegalidade denunciada em diversos momentos por diferentes atores, anunciando, principalmente, a privatização do espaço público, o benefício ao mercado imobiliário e a impossibilidade de execução do projeto, o poder executivo encaminhou um novo estratagema, qual seja: a criação da primeira operação urbana consorciada de Maringá, a OUC Novo Centro Cívico – Eurogarden. A Lei no 946 foi aprovada pela Câmara Municipal, em sete de junho de 2013. No encaminhamento do projeto de lei aos vereadores, solicita-se a aprovação em “regime de urgência especial, tendo em vista tratar-se de matéria de ordem relevante”.
E, assim, a lei foi aprovada afrontando diversas diretrizes do Estatuto da Cidade.
A denúncia como ferramenta de enfrentamento. A representação ao Ministério Público
Ainda quando a aprovação da lei que criou a OUC – Novo Centro Cívico Eurogarden era apenas uma possibilidade, ou seja, quando ainda era apenas uma mensagem de Lei do prefeito, pesquisadores do Observatório das Metrópoles – (RMM) – encaminharam uma representação ao Ministério Público, copiada em um parecer para a Câmara Municipal. Tais documentos foram enviados no dia vinte e um de maio de 2013, mas, apesar das irregularidades apontadas, a Lei foi aprovada após duas semanas pela Câmara dos Vereadores.
Os questionamentos relataram cinco principais temas, quais sejam: a) a autorização do uso dos lotes da União e de outros órgãos pelo município (ou seja, a comprovação de que a área de propriedade da União poderia ser utilizada pelo município e, na nossa interpretação, privatizada, tendo em vista o caráter do Projeto Eurogarden); b) a falta de definição da área da OUC no Plano Diretor, o que deveria ser feito em conferência pública que não ocorreu; c) a inexistência de Estudo de Impacto de Vizinhança da OUC, o que é uma exigência do Estatuto da Cidade; d) a ausência do requisito exigido pelo Estatuto da Cidade da forma de controle da operação, obrigatoriamente partilhado com a sociedade civil; e) a falta de parecer do conselho da cidade local (CMPGT) sobre a OUC. Além de não deixar claro, na Lei, as contrapartidas a serem exigidas dos proprietários.
Apesar da aprovação da Lei, nenhuma ação ocorreu na área propriamente. O que foi executado foi uma significativa reformulação da avenida principal que dá acesso à área, para a qual houve recursos do Programa Mobilidade Urbana do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento – para a construção, entre outras coisas, de corredor exclusivo para ônibus, o que não foi realizado.
Os documentos apresentados pelo Observatório das Metrópoles – Núcleo RMM – (a representação e o parecer) ainda fizeram recomendações de que, em suma: a) dever-se-ia reiniciar o processo, corrigindo as irregularidades, atendendo as exigências do Estatuto da Cidade; b) observar o risco do prefeito incorrer em improbidade administrativa; c) a necessidade do debate com a sociedade; d) a inclusão de áreas de Habitação de Interesse Social no perímetro da OUC; entre outras recomendações.
Um pouco mais de três anos após a aprovação da lei da primeira OUC de Maringá, o proprietário que encomendou o Projeto Eurogarden solicitou à prefeitura esclarecimentos quanto à regularidade jurídica da OUC Novo Centro Cívico-Eurogarden, pautado substancialmente nos questionamentos dos pesquisadores do Observatório das Metrópoles – (RMM). Assim, após a análise jurídica da prefeitura, em cinco de janeiro de 2018, o proprietário solicitou a revogação da lei que criou a OUC por considerar que “…a mesma perdeu seu objeto”.
Embora a representação do Ministério Público não tenha sido considerada num primeiro momento, ou seja, na aprovação da Lei, advertiu o investidor, que abandonou o Projeto Eurogarden. Diante da denúncia de irregularidades, supomos que o empreendedor deu-se conta de que não havia garantia jurídica para o seu investimento. Nesta condição, ele mesmo solicitou a revogação da Lei, o que ocorreu com a Lei Municipal no 1115/2018. Este fato evidencia o completo descolamento da proposta privada com a política urbana municipal forjada pelos agentes públicos, pois o que determinou a intervenção foi exclusivamente o interesse imobiliário.
As ações dos agentes públicos até a aprovação da Lei da OUC demonstram o seu empenho para viabilizar o empreendimento privado. O flagrante comprometimento desses agentes com o capital privado, mesmo confrontado com irregularidades jurídicas, empenhou-se na legalização para privatização das áreas públicas. A fragilidade jurídica, desde a origem e denunciada por pesquisadores de instituições de ensino superior da cidade, não sustentou o pacto entre os agentes público e privado. A partir disso, os interesses coletivos passam a ser protagonistas da política urbana, defendidos em uma ação de resistência que conseguiu desmontar o pacto composto pelos grandes interesses imobiliários e representantes políticos, garantindo a manutenção das terras públicas.
Para citar este artículo: Fabiola Cordovil. A denúncia, ferramenta de resistência. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.1 núm.3. A Coruña: Crítica Urbana, noviembre 2018. |