Por Júlia Silveira; Gabriel Barth da Silva |
CRÍTICA URBANA N.29 |
O modelo autogestionário do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) é uma forma alternativa de vida em centros urbanos brasileiros. O movimento por moradia atua ocupando lotes vazios periféricos.
As Cozinhas Solidárias são um ativo das ocupações do MTST que oferecem alimentação gratuita. Essas atuam contra a invisibilização do trabalho reprodutivo promovida pelo capitalismo e são exemplo de estratégia coletiva de autogestão que desassocia a reprodução social da acumulação de capital.
A Autogestão do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um movimento de luta urbana por moradia que atua nas periferias dos grandes centros urbanos do Brasil. O movimento nasce de uma ramificação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o qual ocupa latifúndios improdutivos. Neles, famílias assentadas e organizadas pelo MST produzem e vivem, fazendo cumprir a função social da terra. Conforme o processo de urbanização brasileira e a migração do campo para a cidade, se viu necessária a luta por moradia nos centros urbanos. Dessa forma, nasce o MTST, um movimento que se organiza com base nas territorialidades das periferias brasileiras, com uma metodologia de luta adaptada às cidades.
O MTST organiza ocupações urbanas em lotes vazios, reservados para a especulação imobiliária. Ao ocupar essas propriedades, o movimento permite o acesso à moradia por aqueles que necessitam do valor de uso da terra urbanizada para sua subsistência e não encontram outra forma de acesso a esse direito básico. O processo de gestão das ocupações é autogestionário, com mecanismos de participação popular autêntica e contínua. Para viabilizar a gestão, as ocupações são divididas em unidades territoriais (como bairros dentro dos assentamentos) e setoriais (por assunto temático, como saúde, comunicação e formação política).
As coordenações das unidades territoriais da ocupação são feitas pelos próprios moradores, os quais ficam responsáveis pelo repasse de informações e mobilização de seus vizinhos. Os setores são coordenados por membros do MTST e/ou moradores, os quais lideram iniciativas relacionadas a sua temática, como campanhas de vacinação ou atividades de formação cidadã. Dentro do ferramental para a autogestão, também estão presentes as assembleias, no qual são debatidos e votados temas relevantes para a administração da ocupação, e as Cozinhas Solidárias, espaços geridos pelas famílias assentadas que oferecem refeições gratuitas na ocupação. Essas ocupam um local central na vida cotidiana desses espaços e foram uma iniciativa central de combate à fome nas periferias brasileiras durante a pandemia de COVID-19.
As Cozinhas Solidárias são construídas por meio de mutirões autogeridos e doações de assentados e da comunidade externa. Os alimentos que sustentam as refeições são doados ou advém das hortas urbanas da comunidade, as quais contribuem para a soberania alimentar das periferias. Contam com atividades como cine-debates e rodas de conversas. A gestão desses espaços de trabalho reprodutivo acontece majoritariamente por mulheres, as quais tomam papel importante na administração cotidiana das ocupações. Ao liderarem o espaço de alimentação e subsistência central, as colaboradoras se tornam elos centrais das redes de solidariedade e ganham poder político, proporcionando o empoderamento feminino.
A Invisibilização do Trabalho Reprodutivo pelo Capitalismo
Ao pensar o caso das Cozinhas, deve-se repensar as dinâmicas que atravessam o trabalho reprodutivo cotidiano e como isso envolve o pensar a cidade e sua autogestão. O capitalismo invisibiliza o trabalho reprodutivo, responsável pelas condições de manutenção da vida e reprodução social – alimentação, limpeza, cuidado interpessoal e outras tarefas da esfera doméstica. A desvalorização estrutural dessas práticas ao desconsiderá-las em comparação ao trabalho produtivo, gerador de lucro, causa seu apagamento na gestão urbana. Ao produzir uma recusa de considerar essas práticas integrantes essenciais, a cidade torna-se um espaço que exclui a quem essas atividades são designadas, não adaptando sua forma para a realização dessas práticas.
Quando considera-se a designação histórica do trabalho reprodutivo para mulheres, torna-se explícito como a cidade não as contempla em seu planejamento do cotidiano. Historicamente, não só mulheres são designadas atividades que conflitam diretamente com sua inserção no mercado de trabalho formal ao serem atribuídas responsabilidades reprodutivas, mas também esse trabalho é invisibilizado. É desenhada uma vulnerabilidade estrutural que atravessa os sujeitos responsáveis pelo trabalho reprodutivo, majoritariamente mulheres, tanto na vivência doméstica individual e comunitária quanto no contexto citadino. Assim, apesar da relação dialética de trabalho produtivo e reprodutivo, esse é sistematicamente invisibilizado e seus responsáveis são desvalorizados pelo modelo de cidade em que vivemos.
Cozinhas Solidárias na Autogestão Urbana
Ao centralizar as Cozinhas Solidárias em seu modelo organizativo territorial e gestionário, o MTST reconhece o trabalho de cuidado necessário para a reprodução da vida. A luta anticapitalista do movimento permite viabilizar e visibilizar o trabalho reprodutivo a partir desses espaços comunitários de refeição, ao incluí-los nas formas de trabalho estruturais do movimento e do fazer comunitário. Sendo um trabalho reconhecido e valorizado enquanto produtor de vida e de cuidado, com atribuições de mesma escala do trabalho produtor de bens de outras instâncias, torna-se possível inserir quem contribui com a atividade reprodutiva nas mesmas dinâmicas de poder com quem investe sua força de trabalho em outros modos de produção.
Portanto, ao pensar em estratégias baseadas em na autogestão comunitária, com foco em ajuda mútua, é possível quebrar com lógicas e reproduções de desigualdade históricas, promovendo um olhar interseccional nas reconfigurações do valor de trabalhos de cuidado que são atravessados por dinâmicas de gênero e raça. Visto o abandono sistemático da periferia por parte do Poder Público, considerar essas novas formas de configuração comunitária nos territórios periféricos permite vislumbrar novas formas de ser, atuar e gerir a comunidade. Há uma resposta de autogestão que conflita diretamente com os modos de existência opressivos da grande metrópole e permite reestruturar formas de viver.
Deixa-se de visar apenas um trabalho de geração e acumulação de capital. Ao trazer para a cena todos os sujeitos que produzem bens de diversos níveis e formas que tornam a vida coletiva possível, torna-se possível repensar organizações sociais, distribuindo entre quem produz os frutos do seu fazer cotidiano. As Cozinhas Solidárias são exemplo de estratégia coletiva de autogestão que desassocia a reprodução social da acumulação de capital, iluminando as possibilidades de transformar a sociedade a partir das práticas autogestionárias. Essas atuam contra a invisibilização do trabalho reprodutivo promovida pelo capitalismo, que nega os conhecimentos e ações na esfera do cotidiano que permitem a sustentação da vida.
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Nota sobre a autora e autor
Júlia Silveira, graduanda de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisa sobre Planejamento Insurgente e atua em práticas extensionistas e na luta por moradia.
Gabriel Barth da Silva, psicólogo e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. É bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Brasil e realiza investigações sobre emoções e práticas culturais.
Para citar este artículo:
Júlia Silveira; Gabriel Barth da Silva. As cozinhas solidárias. Autogestão na reprodução social urbana. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.6 núm. 29 Gestión comunitaria. A Coruña: Crítica Urbana, septiembre 2023.