Por Maribel Aliaga, Nádia Vilela, Júlia Bianchi |
CRÍTICA URBANA N.23 |
Brasília, capital federal do Brasil, cidade planejada, símbolo da arquitetura e do urbanismo moderno, é hoje, em termos populacionais, o terceiro conglomerado urbano do país. Porém, em Brasília há muitas Brasílias e nem todas cabem em um quadrado. Com o tempo, o processo de transformação e crescimento expulsou a população vulnerável para fora dos limites do Plano Piloto, para as cidades satélites e o entorno, provocando, diariamente, exaustivos deslocamentos da massa de trabalhadoras em um processo pendular. Se a cidade é ‘muitas’, quais são os direitos e o papel da mulher?
Este ensaio é parte da investigação interdisciplinar e plural do Observatório Amar.é.linha que procura fazer uma revisão histórica, colocando no cenário as personagens esquecidas ou invisibilizadas. Considerando a invisibilidade de forma estrutural e territorial, refletimos sobre o papel da mulher no território, a partir da casa, da domesticidade, do seu entorno próximo, dos deslocamentos e do seu ocupar a cidade. Revisitando a cidade nas escalas geográficas e territoriais, cotidianas e corpóreas. Entendendo o crescimento das cidades e a ausência de equipamentos públicos nas periferias, lugares de alta concentração feminina na chefia dos lares. Tal olhar se aplica à cidade como território ocupado por mulheres e suas questões como indivíduos e coletividade. Ao longo do tempo, a pesquisa tem procurado contribuir no debate, atual e pertinente, até mesmo na tomada de decisões públicas de planejamento urbano, o reconhecimento das relações políticas, sociais, econômicas e arquitetônicas e urbanísticas entre a mulher e a cidade.
A Brasília sonhada x a cidade real
Brasília é um contexto muito particular, tanto na criação da cidade, como na sua importância política. Construída como cidade modelo de uma nova forma de vida, a moderna, a cidade se ergueu diante de vislumbres de avanços econômicos, sociais e políticos, e sob o suor de muitos trabalhadores que largaram tudo para viver a promessa de uma vida melhor.
Ao pensarmos na construção da cidade, celebra-se o marco urbanístico e arquitetônico na arquitetura brasileira, a voracidade da edificação em tempo recorde, e nomes como o de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, o Presidente Juscelino Kubitschek, Burle Marx e dos candangos (trabalhadores das obras), protagonizam essa narrativa. Em meio ao estrelato solo de ilustres homens que tornaram realidade a capital brasileira, o espaço da mulher é interrompido pelo protagonismo masculino que perpassa sorrateiramente. No entanto, o papel da mulher arquiteta se dilui na predominância de ícones masculinos da arquitetura moderna.
As narrativas e histórias sobre a capital costumam enaltecer a empreitada da construção de uma cidade em cinco anos, como sonhava J.K., sua arquitetura e seus palácios. E como cidade inventada que só nasceu pelo traço do arquiteto, foi através do Concurso para o Plano Piloto de 1957 que o desenho se tornou realidade. A começar pelo Edital do concurso, o documento não faz distinção de gênero, entretanto, o primeiro registro feminino no livro do IAB é de 1948. E se pensarmos na representação feminina nas sete equipes premiadas no concurso, temos um total de 70 membros participantes, destes, apenas 7 são mulheres. Mesmo com 10% de representatividade, sabemos pouco sobre quem são e qual foi a sua real participação, informações que esta pesquisa pretende organizar a partir de pesquisa em acervos históricos.
Para além do concurso, a cidade tem hoje uma população majoritariamente feminina na maior parte do Distrito Federal, onde as mulheres representam não só a maioria absoluta, mas também a economicamente ativa. Neste cenário, temos também o recorte de raça onde segundo dados de 2020 a população do Distrito Federal é composta principalmente por pretas e pardas. Brasília, capital federal do Brasil, cidade planejada, símbolo da arquitetura e do urbanismo moderno, é hoje, em termos populacionais, o terceiro conglomerado urbano do país. As questões sociais e raciais sempre foram um problema na região, porém, durante a pandemia a questão tomou novos contornos, agravando a situação econômica e criando um contingente de refugiadas urbanas.
Com o tempo, o processo de transformação e crescimento expulsou a população vulnerável para fora dos limites do Plano Piloto, para chamadas Cidades Satélites. Tal estruturação urbana do Distrito Federal e de sua área metropolitana conta com uma formação dispersa, que concentra população da classe trabalhadora longe das centralidades urbanas onde realizam suas atividades cotidianas, provocando, diariamente, exaustivos deslocamentos da massa de trabalhadoras em um processo pendular.
Por isso, voltamos a atenção para a reflexão sobre a mulher diante das vulnerabilidades presentes no espaço urbano, destacando a realidade dos padrões de mobilidade, o uso de transporte público, especialmente devido às rotinas de trabalho.
De acordo com o relatório “Como anda Brasília”, elaborado a partir dos dados da PDAD 2018 (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios), verificou-se que as mulheres são as principais usuárias do transporte público, e que mais se deslocam pela cidade. Por quase todas as regiões administrativas (RAs), com exceção a Brazlândia e Cruzeiro, o modal mais utilizado por mulheres para deslocamentos com motivo de trabalho é o ônibus (42,94%), enquanto entre os homens, o automóvel (52,11%). Este cenário só sofre modificações na medida em que as mulheres têm acesso a melhores condições de renda.
Na escala da rua, transparece os desafios e vulnerabilidades enfrentados diariamente por mulheres, que têm seus corpos e suas experiências urbanas constantemente atravessadas pelas estruturas machistas e patriarcais de nossa sociedade. A circulação feminina pela cidade descreve padrões de mobilidade complexos e segmentados em razão da justaposição dos esforços com o trabalho remunerado e o trabalho doméstico.
Surge então a inquietação quanto à invisibilidade na produção da arquitetura e a partir da constatação das ausências, o entendimento de que era necessário começar a descobrir a participação feminina na construção de Brasília. Este estudo histórico nos colocou diante de outras invisibilidades, como a invisibilidade na ocupação do território, por exemplo. Para compreender esta ocupação, é importante adotar uma nova epistemologia, por uma leitura feminista da cidade. A desigualdade social e territorial é ainda maior quando em nossos estudos nós colocamos as questões de gênero.
Nota sobre as autoras
Maribel Aliaga, arquiteta e urbanista, professora da Fau UnB desde 2008. Mestre em Teoria da Arquitetura e Urbanismo pelo PROPAR – UFRGS, e doutora em Teoria e História da Arquitetura pela UnB. Feminista e Pesquisadora do Observatório Amar.é.linha. – arqmarialiaga@gmail.com
Nádia Vilela é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília – UnB, feminista, integrante do Observatório Amar.é.linha e jovem pesquisadora no grupo Paisagem, Projeto e Planejamento (PPP-Labeurbe) na FAU-UnB. Participou do Programa de Iniciação Científica (2020-2021) com a pesquisa “Cidades Novas à margem da BR-163”. – nadiabtvilela@gmail.com
Júlia Bianchi, graduanda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB), e integrante do Observatório Amar.é.linha, grupo de estudos feministas em Arquitetura e Urbanismo. Participou do Programa de Iniciação Científica (2020-2021) com a pesquisa «Cartografia da Covid-19: Costuras sobre mulheres, narrativas e números.» – jbfbianchi@gmail.com
Para citar este artículo:
Maribel Aliaga, Nádia Vilela, Júlia Bianchi. Brasília: breve olhar feminista sobre a cidade moderna. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.5 núm. 23 Urbanismo Feminista. A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2022.