Por Gonçalo Antunes|
CRÍTICA URBANA N.14
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“Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino imagina várias cidades visitadas por Marco Polo, que, por sua vez, relata as suas experiências a Kublai Kan, o imperador dos Tártaros. Nesse relato, Marco Polo dá como exemplo diversas cidades contínuas, como é o caso da cidade de Cecília».
Conta Marco Polo que um pastor, perdido com o seu rebanho, lhe perguntou como se chamava aquele local, pois não o conseguia diferenciar de outras paisagens urbanas, ao que Marco Polo respondeu que o pastor se encontrava na ilustre cidade de Cecília. Depois deste episódio, Marco Polo foi viajar pelo mundo e, anos mais tarde, sentiu-se ele próprio perdido entre ruas em tudo iguais, pelo que perguntou a um transeunte em que cidade se encontrava; respondeu-lhe o transeunte que estava na cidade Cecília, cidade sem fim, da qual não se conseguia sair. Foi então que Marco Polo reconheceu o pastor, acompanhado com o que restava do seu rebanho. Marco Polo e o pastor já não sabiam quando tinham entrado em Cecília e, como dizia sabiamente o velho pastor, os lugares misturam-se e Cecília está em toda a parte.
No seu relato a Kublai Kan, Marco Polo dá conta de outra cidade contínua, de seu nome Trude. À semelhança de Cecília, em Trude tudo se assemelhava. Os subúrbios eram todos iguais, com as suas praças, ruas e alamedas idênticas. Era a primeira vez que Marco Polo estava em Trude, mas sentia que já conhecia a cidade, os seus hotéis, as praças, os largos, as ruas, as alamedas, pois todos eram iguais ao que já tinha visto em outras cidades por onde passara. Marco Polo sabia do infeliz destino que o aguardava: quando partisse para outra cidade, chegaria a outra Trude. O mundo está coberto por uma única Trude, concluía.
Os relatos de cidades contínuas repetem-se, como Leónia, a cidade de cujos desperdícios invadem o mundo; Procópia, a cidade densa e sobrelotada; ou Pentensileia, a cidade diluída no espaço, sem centralidade(s) e que é a periferia de si própria.
Olhemos agora para o mundo real, que certamente influenciou as cidades imaginadas por Italo Calvino. O momento reformador da Revolução Agrícola, há cerca de 12.000 anos, permitiu que se estabelecessem os primeiros povoados humanos, que evoluíram, posteriormente, para grandes cidades, o berço das primeiras civilizações. Depois de séculos de desenvolvimento urbano e populacional relativamente lento, foi com a Revolução Industrial, por volta de 1.800, que se iniciou uma dramática transformação na paisagem das cidades.
No início do século XIX, dos cerca de mil milhões de habitantes no planeta, menos de 5% viviam em ambiente urbano. Atualmente, vivem no planeta mais de sete mil milhões de habitantes, dos quais cerca de 55% residem em espaços urbanos. Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria da população vive em cidades de pequena, média e grande dimensão. Esta é uma tendência que se prevê que se mantenha, com a população mundial a atingir os onze mil milhões em 2100, com cerca de 75% a viver em cidades.
Hoje, existe um número cada vez maior de países com a maioria da população a viver em espaços urbanos, como é o caso do Japão, com mais de 90% da população a viver em cidades, ou os Estados Unidos da América, Reino Unido, França, Espanha e Alemanha, com valores próximos dos 80%. Atualmente, várias megacidades destacam-se devido à sua população total, como é o caso de Tóquio, Deli, Xangai, São Paulo, Cidade do México, Cairo, Mumbai ou Pequim, todas com mais de vinte milhões de habitantes.
É neste contexto que podemos falar de cidades contínuas, que cada vez mais dominam a contemporaneidade. Em meados do século XX, as visões de Lewis Mumford1, Jane Jacobs2, ou Henri Lefebvre3, apresentavam-se bastantes apreensivas, ou mesmo pessimistas, sobre os espaços urbanos que se estavam a desenvolver no mundo desenvolvido. Estes pensadores demonstravam-se preocupados com a desumanização das cidades e o seu crescimento excessivo, sem que a qualidade de vida da população fosse colocada como a pedra basilar do desenvolvimento urbano.
Mais recentemente, tem sido possível verificar que as grandes cidades (ou as grandes áreas metropolitanas) são locais de excelência para observar fenómenos de (in)justiça social, como tem sido apontado por David Harvey4, assim como fenómenos de (in)justiça espacial, conforme analisado mais recentemente por Edward Soja5.
Estas reflexões estão longe de negar a importância das cidades no mundo contemporâneo, mas criticam a forma como se têm estruturado. As cidades são necessariamente o reflexo da sociedade capitalista em que vivemos, como notado, também, por David Harvey6. Embora correndo o risco de uma simplificação excessiva, os espaços da cidade capitalista estão espacialmente hierarquizados, sendo o valor do metro quadrado o indicador mais visível dessa hierarquização. As grandes áreas metropolitanas são espaços eminentemente desiguais, o que é visível em diferentes dimensões que se sobrepõem, como a espacial, a social, a económica e a cultural.
Contudo, deverá salientar-se que as grandes aglomerações urbanas trazem também aspectos positivos. É essa a perspectiva de Edward Glaeser7, que procura desconstruir muitas das críticas realizadas às cidades contemporâneas. Além de Glaeser, modelos da geografia económica têm vindo a sublinhar os ganhos competitivos e de produtividade das cidades, atribuíveis à concentração de população e de actividades económicas. É este o caso de conceitos como os distritos industriais, as economias de aglomeração, os clusters, as cidades criativas, ou as cidades globais, que dependem sempre de noções associadas às economias de escala e à existência de grandes cidades.
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Cidades globais
Cada vez mais, existem no mundo grandes cidades predadoras. São as cidades globais, como denomina Saskia Sassen. A ideia inerente às cidades globais parte do princípio de que a globalização deu origem a pontos estratégicos, com diferentes importâncias hierárquicas, sendo esses pontos estratégicos urbanos são fundamentais para o funcionamento do sistema financeiro e de comércio global. As cidades globais são assim locais de contemporaneidade, poder, sofisticação, riqueza e influência global. O Globalization and World Cities Study Group & Network, tem apontado consecutivamente para Nova Iorque e Londres como as cidades com maior projecção mundial e com maior capacidade para influenciar todo o planeta.
As cidades globais são normalmente tidas como cidades vencedoras no sistema competitivo global. Todavia, como aponta a própria Sassen, as cidades globais são máquinas para produzir riqueza, mas também produzem e expandem desigualdades. Neste sentido, é também curioso ver como Richard Florida, percussor do conceito de creative class8, assente na competição agressiva entre cidades para atrair empresas, universidades e know how altamente qualificado, tenha recentemente9 percebido que a emergência de superstar cities é perniciosa, por concentrarem de forma excessiva empresas, indústria, talento e riqueza, tendo um funcionamento predador que deixa o restante território (mundial) na sombra.
Saindo do cenário global, esta análise pode ser transportada para a escala nacional. Frequentemente, existe a tentação de centralizar a população, riqueza, empresas, universidades e actividades económicas numa só cidade, por norma a capital do país. Esta é uma tendência visível em muitos países em desenvolvimento, mas não só. Por exemplo, em Portugal cerca de 27% da população reside na Área Metropolitana de Lisboa, e 16% na Área Metropolitana do Porto, totalizando 43% da população portuguesa. Esta situação é demonstrativa de desequilíbrios históricos na distribuição da população pelo território e, por consequência, das actividades económicas, culturais, dos serviços e das grandes infraestruturas, concentradas excessivamente no litoral e na capital, colocando o restante território numa posição desvantajosa e menos atractiva.
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À procura da articulação do mundo urbano
O que diferencia a nossa sociedade urbana das soturnas cidades contínuas visitadas por Marco Polo? Não existirão alternativas ao modelo de grandes cidades que concentram a população e as actividades económicas?
As críticas às grandes cidades, gigantes de betão e de cimento, não são de agora. As disfuncionalidades dos espaços urbanos têm sido apontadas ao longo de todo o século XX, existindo um conjunto amplo de reflexões que apontam como as grandes cidades, embora continuem a ser vistas como a miragem de modernidade e de desenvolvimento, são também potenciadoras de desigualdades multidimensionais.
Cada vez mais, percebe-se que no mundo contemporâneo a redução do espaço-tempo e a disseminação de meios tecnológicos podem permitir que se encontrem novas soluções urbanas, que devem passar pela articulação de grandes, médias e pequenas cidades dispersas, contribuindo assim para uma melhor organização do território.
A pandemia global Covid-19 demonstrou como este tempo excepcional pode ser aproveitado para repensar e dar uma nova forma ao mundo urbano contemporâneo. O caos pandémico será também uma oportunidade para construir cidades mais inclusivas, sustentáveis e resilientes, afinal, que aproveitem as capacidades e as potencialidades de todo o território.
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Notas
1 The City in History, 1961.
2 The Death and Life of Great American Cities, 1961.
3 Le Droit à la ville, 1968.
4 Social Justice and the City, 1973.
5 Seeking Spatial Justice, 2010.
6 Spaces of Capital: Towards a Critical Geography, 2001.
7 Triumph of the City, 2011.
8 The Rise of the Creative Class, 2002.
9 The New Urban Crisis, 2017.
Nota sobre el autor
Gonçalo Antunes é doutorado em Geografia e Planeamento Territorial, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH). É professor convidado na NOVA FCSH e investigador doutorado integrado no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA). O seu trabalho de investigação relaciona-se com a Geografia Urbana e os Estudos Urbanos, e, em particular, as Políticas de Habitação..
Para citar este artículo: Gonçalo Antunes. Cidades contínuas. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.3 núm. 14 Metrópolis, ¿única alternativa?. A Coruña: Crítica Urbana, septiembre 2020. |