Por Alvaro Domingues |
CRÍTICA URBANA N. 24 |
Quando Maricarmen Tapia me convidou para escrever sobre este tema, acrescentou um pequeno sumário onde se afirma que se deveria reflectir sobre (…) las múltiples formas de participación. Cómo puede ser un instrumento para desmovilizar la acción social y legitimar decisiones en contra del bien común, o una herramienta de transformación social y política para llevar a cabo el derecho a la ciudad.
Estava lançado o mote da questão: num contexto ideológico onde, genericamente, se estimulam e validam as metodologias de participação como estratégia para melhorar o funcionamento da democracia, torna-la mais transparente e aprofundar o sentimento de cidadania, existe também uma outra visão menos discutida que não só qualifica negativamente esse tipo de práticas políticas, como as considera como acções demagógicas e populistas que ameaçam a própria democracia representativa, criando a ilusão de que toda a gente pode discutir e ter um papel directo nas decisões colectivas.
A discussão não é fácil porque, entre outras questões, a dita participação se pode desenvolver em contextos completamente distintos – um referendum nacional onde apenas se pode dizer sim ou não, ou um frenesim de cliques no teclado acerca de um qualquer manifesto – com graus de formalismo igualmente diversos – sem se perceber como se avalia a legitimidade do que é decidido ou que tipo de manobras de influencia se passaram nos bastidores, que grupos de pressão seriam, que indivíduos ou interesses -, acerca das mais variadas questões – normalmente individualizadas e desligadas de outras complexidades onde se deveriam contextualizar – mais ou menos, carros algures.
O “direito à cidade”, um slogan retirado do título de um livro de Henri Lefebvre –Le droit à la ville,1968– é provavelmente uma das expressões mais gastas acerca do assunto porque nela cabem todas as metáforas. Sendo tantas vezes apontada como algo que é um direito dos mais fracos, dos que estão excluídos dos processos de decisão ou daqueles cujos interesses e necessidades não são levadas em consideração nas políticas públicas, é paradoxal constatar que muito frequentemente se usa essa metáfora para organizar orçamentos participativos claramente liderados por minorias sociais que detêm elevadas competências de acesso aos media convencionais ou aos chamados novos media. Visto do lado dos poderes formais, também é vulgar encontrar fortes empenhamentos propagandísticos na matéria – muito ruído e pouco orçamento – apenas para dissipar o mal-estar que muitos sentem em matéria de afastamento em relação aos centros de decisão.
Num artigo intitulado “Democracia sin política”, 2014, Daniel Innerarity afirma:
En nuestras sociedades democráticas no faltan espacios abiertos de influencia y movilización, redes sociales, movimientos de protesta, manifestaciones, posibilidades de intervención y bloqueo. Lo que no va tan bien es la política, es decir, la posibilidad de convertir esa amalgama plural de fuerzas en proyectos y transformaciones políticas, dar cauce y coherencia política a esas expresiones populares y configurar el espacio público de calidad donde todo ello se discuta, pondere y sintetice (…) En una sociedad compleja y diferenciada solo la representación consigue que una pluralidad de sujetos sea capaz de actuar sin anular esa pluralidad. En este sentido la representación no es un inconveniente sino una capacitación para que la sociedad actúe políticamente y, al mismo tiempo, garantiza el mantenimiento de su diversidad.
No desenvolvimento e argumentação destas matérias, o autor refere-se muitas vezes a um clima de crise de representação, às ilusões do entusiasmo digital, a múltiplos processos de decisão de grande opacidade e por isso, ou porque os temas são de levada complexidade, a sucessivos problemas de legitimação das decisões. Sobre o plebiscito, Innerarity insiste sobre o empobrecimento da discussão que desagua em possibilidades binárias – sim ou não – e a facilidade com que se manipulam representações simplificadas, se dramatizam paixões e sentimentos, se usam as mesmas ferramentas da sociedade do espectáculo e da anomia populista: … a quienes tienden a celebrar la espontaneidad social conviene recordarles que la sociedad no es el reino de las buenas intenciones (…) ou … En el fondo, la ilusión de una sociedad autogobernada sin mediaciones institucionales y jurídicas se distingue muy poco del mito liberal de la autorregulación de los mercados.
É vulgar também encontrar práticas de activismo focadas no indivíduo e no individualismo; aproveitamento de conjunturas de forte impacto mediático mas que, de facto, se organizam a suposta participação em torno de questões pontuais que tantas vezes são apenas partilhadas de forma restrita por um determinado grupo social ou estilo de vida; e sobretudo, argumentos e práticas de organização da decisão que se dizem apolíticas porque apelam para argumentações morais – a discussão do aborto, da eutanásia ou dos temas ditos fracturantes – e/ou princípios e razões tidos como absolutos: não produzirás CO2, como quem diz não matarás. Outras vezes, tudo isto se transforma em lutas por causas muito difíceis de explicar minimamente do que é que se trata: a natureza, por exemplo, seja lá o que isso for. Frequentemente são apenas jogos de nimbismo –NIMBY, not in my backyard– de quem quer e pode empurrar aquela questão para outro lugar da geografia ou da sociedade. A estratégia mediática é especialista no assunto e a audiência está garantida.
Em contextos sócio-políticos onde a democracia é pobre, intermitente e tomada por interesses de grupos, a democracia directa e a mobilização popular podem ser uma arma – muitas vezes, a única. Quando se confrontam democracias maduras com a crepitação constante da participação distribuída pelas mais diversas causas e âmbitos geográficos ou sub-sistemas sociais, o ruído pode ser imenso; o resultado duvidoso e a grande agitação ser apenas um esquema de dissipação de conflitos sem que nada mude substancialmente.
Acerca das coisas que fazem falta mas cuja avaliação é contraditória, diz um poema popular português:
Nem contigo, nem sem ti / tem remédio pesar meu /contigo porque me matas / sem ti porque morro eu.
Nota sobre o autor
Alvaro Domingues é doutor em Geografia Humana e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, onde é também investigador do Centro de Arquitetura e Estudos Urbanos CEAU-FAUP, nas áreas de Geografia Urbana e Paisagem.
Para citar este artículo:
Alvaro Domingues. Contradições da participação. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales, Vol.5 núm. 24 Participación: mito o realidad. A Coruña: Crítica Urbana, junio 2022.