Por Marcos Bernardino de Carvalho |
CRÍTICA URBANA N. 24 |
Em um dos primeiros números de Crítica Urbana (Crítica Urbana 3, novembro de 2018) publicamos um artigo sobre o significado da ‘política’. Consequentemente, a questão da participação, ou de sua ausência, foi igualmente incluída em nossa reflexão.
Naquela ocasião, argumentamos que a ‘participação’, tema deste número, era o principal agente, a ampliar as possibilidades e aquisições no universo da política e de sua compreensão ou existência institucionalizada. Se superamos uma condição de significados restritos, impostos pela cartografia do mundo político, com suas fronteiras soberanas, indicando as territorialidades dos Estados nacionais e suas pretensões subjugadoras e hegemônicas, e a ampliamos para uma ideia de política como a arte de não só definir, mas também de questionar os limites, subordinando-a à regulação dialética sociedade-Estado, é porque, de alguma maneira, modalidades diversas de participação se fizeram presentes, alargando os limites daquilo que se pretendia apenas controlado, ou até mesmo sufocado, pelos poderes institucionais do Estado-nação.
Ilustram muito bem isso alguns dos adventos recentemente consagrados por diversos países latino-americanos, tais como a plurinacionalidade e a extensão do universo dos direitos, que reconhece a inclusão de outros sujeitos nessa condição, outrora regida apenas pelos poderes de Estado e de suas instituições, ou pelos contratos exclusivamente sociais.
Por aqui, e graças à participação organizada de vários setores e povos vitimados pela invasão ocorrida há mais de 500 anos, estão sendo gestadas novidades tão ou mais importantes, em termos de potencialidade para situações futuras (e não só para a América, mas também para o conjunto do planeta), como aquelas testemunhadas por esses séculos de colonialidade e pós-colonialidade.
Sobretudo por iniciativa das populações indigenizadas e escravizadas nesse processo, e colocadas à margem das decisões, é que essas situações estão sendo reconfiguradas.
Originalidades latino-americanas
Da renomeação da América, rebatizada Abya Yala, como assim a denominavam os Kuna, habitantes dos territórios que hoje correspondem à Colômbia e ao Panamá, muito antes das fronteiras da geopolítica cindirem suas terras em dois países, às novas organizações, instituições e constituições, já consagradas, ou em processo de institucionalização, muitas são as novidades para as quais deveríamos prestar a nossa atenção.
Essa denominação – Abya Yala – passou a ser adotada pelos povos originários da América, a partir de iniciativas de organização que os levaram a realizar diversas Cumbres, com o intuito declarado de “construir um sentimento de unidade e pertencimento” entre todos eles e seus territórios, conforme registro da Enciclopédia Latino Americana. Em uma dessas Cumbres, ocorrida em Iximche (Guatemala) em 2007, os participantes não só reafirmam as autoconvocações como Abya Ayla, mas constituíram uma “Coordenação Continental das Nacionalidades e Povos Indígenas de Abya Yala”, assim anunciada na Declaração de Iximche:
«Nos constituimos en la Coordinadora Continental de las Nacionalidades y Pueblos Indígenas del Abya Yala, como espacio permanente de enlace e intercambio, donde converjan experiencias y propuestas, para que juntos enfrentemos las políticas de globalización neoliberal y luchar por la liberación definitiva de nuestros pueblos hermanos, de la madre tierra, del territorio, del agua y todo el patrimonio natural para vivir bien». (Declaração de Iximche, 10 de abril de 2007)
Nessa mesma Declaração indica-se também o apoio às muitas novidades, em termos de ordenamento geopolítico, que por aqui já vinham se gestando, exortando por:
“Consolidar los procesos impulsados para fortalecer la refundación de los Estados – nación y la construcción de los Estados plurinacionales y sociedades interculturales a través de las Asambleas Constituyentes con representación directa de los pueblos y nacionalidades indígenas. Avanzar en el ejercicio del derecho a la autonomía y libre determinación de los pueblos indígenas, aún sin el reconocimiento legal de los Estados – nación” (ibid).
Novo mundo, nova política: (des)norteada e plurinacional
Em anos seguintes, nos aparatos constitucionais de alguns países da América Latina, como Equador e Bolívia, por exemplo, essas perspectivas adquiriram institucionalidade, com a promulgação das suas novas constituições, em 2008 e 2009, respectivamente, nas quais as identidades plurinacionais, lastreadas nas ideias do Bien Vivir, foram consagradas. Trata-se, sem dúvida de um pioneirismo que aponta para novos modelos de organização da geografia política do mundo.
Já em outros países, mesmo que a identidade plurinacional ainda não tenha sido consagrada, como é o caso da Colômbia, a consideração da natureza e de seus componentes como “sujeitos de direitos”, na Carta de 1991, denominada “Constituición Ecológica”, ou nas diversas sentenças expedidas pela Corte Constitucional daquele país, indicam a inclusão do respeito às epistemologias e cosmologias dos povos originários, ao adotar os novos horizontes propostos pelas referências de um ‘contrato’ que não seja apenas social, mas igualmente ‘natural’. Em uma dessas famosas sentenças expedidas pela Corte Constitucional da Colômbia, – T-622 de 2016 –, demandada por diversas associações de populações originárias e tradicionais contra o governo por causa da poluição e contaminação de um dos mais importantes rios do país – o Atrato –, este foi declarado como “sujeito de direitos”, com base, inclusive, no princípio de que “la naturaleza no se concibe únicamente como el ambiente y entorno de los seres humanos, sino también como um sujeto com derechos propios, que, como tal, deben ser protegidos y garantizados”. (Ibid)
Novos contratos e direitos (sociais e naturais)
Os “direitos de cidadania” conquistados aqui, ampliam-se, como se vê, para os demais integrantes da natureza. Em alguns textos constitucionais ou nas sentenças expedidas por suas cortes, como no caso colombiano, há um novo enfoque jurídico, relacionado aos ‘direitos bioculturais’, que tem como premissa central o reconhecimento da unidade e interdependência entre natureza e espécie humana e, consequentemente, “dos vínculos dos modos de vida dos povos indígenas, tribais e das comunidades étnicas com os territórios e a utilização, conservação e administração de seus recursos naturais” (Ibid, pg. 18). Das consequências práticas dessa abordagem, entre outras, destaca-se a compreensão de que “la conservación de la biodiversidad conlleva necesariamente a la preservación y protección de los modos de vida y culturas que interactúan con ella. (Ibid., pg 133)
No Brasil, ainda em 1988, promulgou-se a chamada “Constituição Cidadã”, que institucionalizou o final da Ditadura Militar e consagrou muitos direitos sociais e culturais, incluindo o de povos indígenas, dedicando um capítulo especial à questão ambiental, internacionalmente reconhecido como avançado. Resultante de ampla participação social, que provocou a Constituinte de 1987, a Carta promulgada segue estimulando os movimentos sociais em sua defesa, ou em seu aprimoramento. Durante boa parte do segundo semestre de 2021, por exemplo, representantes de 170 povos indígenas que habitam terras brasileiras, revezaram-se em Brasília participando de algumas das maiores manifestações populares e indígenas pós-constituinte, durante os dois meses que durou o julgamento, protestando contra a adoção de um ‘Marco Temporal’ para o reconhecimento de suas terras. O julgamento, suspenso, deverá voltar ainda em 2022. Certamente provocará novas concentrações e manifestações dos representantes dessas etnias.
A participação instituindo direitos: das mulheres, dos indígenas e os bioculturais
Nos países latino-americanos dentre os que estamos mencionando, não só os direitos indígenas, ou os “bioculturais” têm tido lugar, mas outros direitos sociais, há tempos reivindicados, conquistam reconhecimento institucional. A mencionada Corte Constitucional colombiana, por exemplo, em uma deliberação das mais recentes (fevereiro de 22), após intensa pressão e participação do movimento social, especialmente protagonizado pelas mulheres, declarou que a “Conducta del aborto solo será punible cuando se realice después de la vigésima cuarta (24) semana de gestación” (https://twitter.com/CConstitucional)
Essas perspectivas, da institucionalização dos muitos direitos reivindicados, encontram-se agora em um movimento de ascendente consagração, tanto nos horizontes dos aparatos institucionais dos países mencionados, e também em seus movimentos sociais (que souberam, por exemplo, reverter um risco de retrocesso ocorrido na Bolívia, em 2019, corrigido em 2020), como em países que recentemente sofreram mudanças importantes na condução dos seus processos, ainda em curso de consolidação.
Bastaria mencionar mais alguns nomes de países latino-americanos, para que nossa memória os associasse às recentes conquistas que movimentos sociais de intensa participação impuseram às novas institucionalidades que nestes se verificam. Em alguns deles, militantes desses próprios movimentos foram alçados aos postos mais importantes dos poderes centrais instituídos em seus países. Em períodos muito recentes isso poderia ser verificado dos latinos da América do Norte aos do Sul, passando pelos da América Central. México, Honduras, Peru ou Chile, poderiam ser reunidos para exemplificar o que aqui se diz. E o próprio Brasil, com eleições presidenciais marcadas para 2022, tende a reverter o retrocesso vivenciado nos últimos anos, realinhando-se com a tendência dos demais países latinos aqui mencionados.
Mas é com o Chile que concluiremos essa reflexão, pois dali, com o rico processo em curso, é que talvez possamos extrair alguns dos exemplos mais ilustrativos das mudanças que a participação dos movimentos sociais tem provocado.
Chile: a eficácia da participação radicalizada
Em eleições recentemente ocorridas, dezembro de 2021, uma jovem ex-liderança do movimento estudantil, Gabriel Boric, candidato de uma coligação de partidos de esquerda, foi eleito e assumiu a partir de março de 22 a presidência daquele país. Essa eleição ocorreu em meio a um importante processo de reconhecimento institucional da legitimidade das ações e reivindicações dos amplos movimentos que lá se desenvolveram desde os anos 2006, com a chamada Revolta dos Pinguins, protagonizada pelo Movimento Estudantil, e que se intensificaram em anos mais recentes, em particular nos anos de 2019 e 2020, provocando aquilo que ficou conhecido como o “estallido social”, dadas as dimensões e amplitude de seu alcance, em termos de abrangência e radicalidade, que se espalhou por várias cidades, especialmente em Santiago.
Como resultado de todo esse processo, realizou-se um plebiscito (outubro de 2020) que definiu a convocação de uma Convenção Constitucional – uma constituinte – cujos trabalhos iniciaram-se em julho de 2021.
Segundo Ester Rizzi, professora e pesquisadora da USP, que produziu uma série de artigos recentes sobre o Chile, reunidos sob o título “Empaparme de Chile”: “Um dos poucos pontos consensuais nesta história recente parece ser o seguinte: a Convenção Constitucional instalada em julho de 2021 só existe porque existiu o estallido social de outubro e novembro de 2019”.
A constituinte chilena segue seu curso e já está confeccionando a nova carta que deverá ser concluída até meados de 2022 e submetida a aprovação popular, em plebiscito. Logo em sua instalação, no entanto já se desenhava a predisposição para de fato conferir institucionalidade às pautas principais que desencadearam os movimentos protagonistas do estallido. Em grande parte de seu funcionamento, a Convenção foi presidida por liderança Mapuche, que se declarava tributária das perspectivas do bien vivir e do estado plurinacional. Em seu discurso de posse, como presidenta da Convenção Constitucional do Chile em julho de 2021, declarou Elisa Loncón:
«Esta Convenção, que hoje me toca presidir, transformará o Chile em um Chile plurinacional, em um Chile intercultural, em um Chile que não atenta contra os direitos das mulheres, contra os direitos das cuidadoras; em um Chile que cuida da Mãe Terra, em um Chile que também limpa as águas, livre de toda dominação. (…) Temos que ampliar a democracia, temos que ampliar a participação, temos que convocar até o último rincão do Chile para que veja este processo, que seja um processo transparente, que possa ser visto desde o último canto de nosso território e em nossas línguas originárias que foram postergadas durante tudo o que foi o Estado-Nação chileno «(…) [versão completa do discurso aqui]
Da plurinacionalidade, aos direitos da natureza, passando pelo direito das mulheres em decidir de forma livre sobre seu corpo e sobre a interrupção da gravidez, são inúmeras as novidades já incorporadas pelo Pleno da Convenção Constitucional chilena ao texto da nova constituição que será submetido ao escrutínio popular.
Essas “originalidades” e conquistas em curso nos países destacados, indicam outras referências para a teoria e a ação políticas, decorrentes de outra relação com os movimentos sociais e com a participação popular, pois estes, crescentemente, são cada vez mais considerados também em seu potencial instituinte, cuja eficácia comprovada na ampliação dos espaços e dos direitos plurais, resultam em dimensões institucionais capazes de abrigar a diversidade e a pluralidade da vontade coletiva, e não mais como aquele conjunto instituído apenas para subjugar povos e postergar a escuta “de nossas línguas [e saberes] originários” como assinalou a líder Mapuche na presidência da Convenção Constitucional do Chile. A participação, não custa repetir, sobretudo a mais radicalizada, tem sido decisiva nessas conquistas.
Nota sobre el autor
Marcos Bernardino de Carvalho é professor da Universidade de São Paulo, Brasil, do curso de graduação em Gestão Ambiental e dos cursos de Pós Graduação em Geografia Humana e em Mudança Social e Participação Política. É membro do Conselho assesor da Crítica Urbana.
Para citar este artículo:
Marcos Bernardino de Carvalho. A participação moldando novos direitos e instituições na América Latina. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.5 núm. 24 Participación: mito o realidad. A Coruña: Crítica Urbana, junio 2022.