Por Flávio Chedid Henriques; Vanessa Moreira Sígolo |
CRÍTICA URBANA N. 35 |
A recuperação de empresas por trabalhadores/as no Brasil remonta a histórias da década de 1980, que ganharam impulso na década de 1990, com a grave crise causada pelas políticas econômicas neoliberais. Com o crescimento vertiginoso do número de falências em meados da década de 1990 e o surgimento de instituições de apoio às fábricas em falência, como a ANTEAG, a UNISOL e o Movimento de Fábricas Ocupadas, vivenciamos entre 1995 e 2005 o surgimento da maior parte dos casos em que trabalhadores/as evitaram a falência de suas empresas e passaram a organizar a produção de bens e serviços sem a presença de patrões.
Em 2010, dez universidades brasileiras fundaram o Grupo de Pesquisa e Extensão em Empresas Recuperadas por Trabalhadores/as (GPERT) e com apoio financeiro do CNPq organizou um mapeamento nacional de empresas recuperadas por trabalhadores (ERT). Em três anos, visitamos 57 experiências e identificamos a existência de 67 casos de ERT em funcionamento no país, assim como outras 78 iniciativas que já haviam encerrado atividades. A partir do banco de dados de um mapeamento nacional de economia solidária (realizado anteriormente pelo governo em parceria com organizações da sociedade civil e universidades, abordando empreendimentos cooperativos e associativos de forma mais ampla), investigamos a história de mais de uma centena de empresas recuperadas e estimamos que o Brasil chegou a ter cerca de 200 ERT.

Reuniao de trablladores na ERT Usina Catende. Créditos: Flávio Chedid Henriques
Na pesquisa, em primeiro lugar, buscamos dados básicos dos casos, como a localização das empresas, o número de trabalhadores/as, assim como seus perfis, o ano de início e informações gerais sobre sua história e organização. Identificamos ERT em quatro das cinco regiões do país, sendo o centro-oeste a exceção. A maior parte das iniciativas estava concentrada nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, o conjunto de casos somava cerca de 12 mil trabalhadores/as e a maioria (60%) era de empresas com até 100 trabalhadores/as. Parte significativa (cerca de 50%) realizou alguma medida de força, como acampamento e/ou greve, para lutar pela recuperação.
Também buscamos entender a relação dessas experiências com movimentos sociais e a maioria indicou ter tido apoio de sindicatos. As principais organizações de referência citadas foram a ANTEAG, a UNISOL Brasil, o Movimento de Fábricas Ocupadas e o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Entretanto, muitas experiências não tinham ligações com movimentos sociais ou entidades de representação.
Analisamos também as mudanças relatadas no cotidiano do trabalho e os principais destaques foram relacionados à: descentralização, redução de hierarquias, maior acesso à informação; maior rodízio de atividades, colaboração e motivação para o trabalho; maior flexibilidade, autonomia e liberdade; melhorias nas condições e na segurança do trabalho (mais de 70% indicou ter reduzido o número de acidentes); e redução das diferenças de remuneração (com o valor médio de 4,7 entre o maior e menor salário).
Em anos posteriores, o grupo realizou algumas atualizações do mapeamento de casos no país e constatou a redução do número de experiências brasileiras, com o fechamento de empresas e o não surgimento de novas lutas pela recuperação de empresas por trabalhadores/as. Todavia, há casos que seguem ativos no país há mais de 20 anos e apesar da recuperação de empresas e da autogestão não estarem na pauta da maior parte dos debates políticos atuais, essas histórias de resistência coletiva apontam aprendizados importantes às lutas do nosso tempo presente.
Potencialidade das experiências
Após as imersões em campo feitas pelo GPERT, um dos principais questionamentos com o qual nos envolvemos diz respeito às possibilidades concretas dessa estratégia de resistência e luta para a organização da classe trabalhadora. É possível disseminar a prática de recuperação de empresas no país? Há uma transformação objetiva das condições de trabalho nas ERT? A sua crítica ao modelo capitalista de organização do trabalho contribui na formação da classe trabalhadora?

Evento celebrado en una plaza de la Vila Operaria e Popular en junio de 2023, marcando la entrega simbolica de las placas con los nombres de las calles a sus familiares y comemorando 20 anos del MFO. En la foto están diversos trabajadores, algunos líderes de la Vila, moradores e apoyadores del movimiento. Foto: Nataly Antunes.
Após o primeiro mapeamento, o GPERT iniciou em 2014 atividades de assessoria a algumas ERT. No Rio Grande do Norte, realizamos um trabalho da UFRN com a COMTERN, primeira empresa recuperada conhecida no Brasil, de 1982. Em Santa Catarina, trabalhamos com a COOPERMINAS, caso emblemático que também emergiu nos anos 1980, vinculada à ANTEAG. E, em São Paulo, um conjunto de universidades se reuniu para assessorar a Flaskô, ligada ao Movimento de Fábricas Ocupadas.
O principal objetivo das assessorias foi auxiliar as empresas em questões relacionadas à organização da produção: em sistemas de planejamento e controle da produção, manutenção de máquinas, estudo de tempos e movimentos, entre outras questões. Para tanto, utilizamos como métodos a Análise Ergonômica do Trabalho e a Pesquisa-Ação.
A imersão na realidade das empresas, essa aproximação ao cotidiano de trabalho, nos ajudou a compreender melhor a complexidade do processo autogestionário. Acompanhamos esses casos em um momento de crise econômica profunda, do país e das empresas. Na crise, os conflitos se agudizam e com o passar do tempo, as relações pessoais também se complexificam.
Para além das questões de assessoria técnica, essa nova e mais qualificada aproximação nos permitiu aprofundar reflexões sobre autogestão, aportando ao debate teórico a dimensão da contradição. Fazendo um paralelo com conceitos da ergonomia (trabalho prescrito e trabalho real), identificamos uma distância entre a autogestão real e a autogestão prescrita. Essa distância, no nosso ponto de vista, não representa o que alguns autores chamam de degeneração das experiências, mas ajudam a compreender a autogestão na prática no Brasil contemporâneo. Para além dos dois meses gloriosos e trágicos da Comuna de Paris, o que se produz em autogestão do trabalho ao longo de décadas de convívio, luta, superação e crise?
A principal crítica ao modelo capitalista que essas experiências trazem é apresentar na prática a possibilidade de gestão de empresas sem a presença de patrões. Algumas avançam e fazem essa gestão com inovações relevantes para a classe trabalhadora. Outras conseguem ampliar essa mirada e passam a se relacionar com os bairros e comunidades aos quais pertencem, desafiando a lógica instrumentalista de responsabilidade social empresarial. Ainda há as que vão além e constroem junto aos movimentos sociais uma pauta de lutas reivindicando direitos para a classe trabalhadora.
Não são todas, entretanto, que chegam a esses estágios. As necessidades cotidianas para manter em funcionamento uma empresa que entrou em falência, sem crédito fácil, tendo que ceder a todas as exigências de seus clientes, sem política pública específica para essas iniciativas, muitas vezes fazem com que as iniciativas estejam totalmente focadas “apenas” em produzir e sobreviver em um mercado extremamente hostil para elas.
Nossa visão, enquanto pesquisadores/as do GPERT, que nos aproximamos dessas experiências para compreendê-las melhor e apoiá-las, é que o fato de alguns casos não ampliarem suas lutas para além do cotidiano de sobrevivência das empresas, não invalida a importância da experiência de recuperação em autogestão para a crítica necessária ao sistema capitalista de produção. Produzir sem patrão expressa uma crítica direta ao discurso gerencialista, que sacraliza a figura do administrador de empresas e destina à classe trabalhadora a função de executora de ordens.
A experiência brasileira de recuperação de empresas por trabalhadores/as é um rico capítulo da história operária do país e apresenta uma ampla gama de experiências importantes que devem seguir como referências para a mais do que necessária contestação e superação do modo capitalista de produção. Em tempos de catástrofes climáticas e riscos de novas pandemias, as recuperações de empresas por trabalhadores/as são exemplos de resistências e lutas coletivas em defesa da vida.
_____________
Textos de referência
Araujo, Fernanda; Oliveira, Vicente; Henriques, Flávio; Sígolo, Vanessa Moreira; Pompeu, Lucca; Atolini, Tarcila. (Orgs.). Dialética da autogestão em Empresas Recuperadas por Trabalhadores no Brasil. Marília: Lutas Anticapital, 2019.
Henriques, Flávio C.; Sígolo, Vanessa M.; Rufino, Sandra; Araujo, Fernanda S.; Nepomuceno, Vicente; Giroto, Mariana B.; Paulucci, Maria Alejandra; Rodrigues, Thiago N.; Rocha, Maira C.; Faria, Maurício S. Empresas Recuperadas por trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.
Sígolo, Vanessa M. A contrapelo: autogestão, recuperação de empresas e a Usina Catende em Pernambuco. 2015. Tese. (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
Nota sobre o autor
Flávio Chedid Henriques, Engenheiro de Produção, com doutorado em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. É professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia para o Desenvolvimento Social do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor do livro Autogestão em Empresas Recuperadas por Trabalhadores: Brasil e Argentina. Contato: flaviochedid@gmail.com
Nota sobre a autora
Vanessa Moreira Sígolo. Socióloga, mestre pelo Programa em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP), doutora e pós-doutorada em Sociologia pela USP. Pós-doutorada em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É Pesquisadora do Centro de Estudos SoU_Ciência – Unifesp; articuladora do Instituto Paul Singer; e mãe. Contato: vanessa.sigolo@gmail.com
Para citar este artículo:
Flávio Chedid Henriques; Vanessa Moreira Sígolo. Empresas recuperadas por trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 8, núm. 35, Producción fabril para la producción de la vida. A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2025.