Por Janaína Quiterio do Nascimento |
CRÍTICA URBANA N. 35 |
Este artigo mostra a configuração do apoio internacional ao movimento de ocupação de fábricas no Brasil, com ênfase nas ocupações da Cipla e Interfibra em Joinville-SC. Desde 2003, as mobilizações extrapolaram os limites locais, engajando apoio político e social que culminou em caravanas à Brasília e conferências nacionais e internacionais.
O 1º Encontro Latinoamericano de Empresas Recuperadas em Caracas, em 2005, uniu trabalhadores de nove países, fortalecendo a solidariedade internacional. Embora o governo brasileiro tenha ignorado as demandas das fábricas ocupadas, a Venezuela adotou políticas de nacionalização. As intervenções judiciais representaram grandes desafios, mas a luta pelos empregos e direitos trabalhistas continuou a inspirar ações além das fronteiras.
Desde o início da ocupação das fábricas Cipla e Interfibra, em Joinville-SP, as mobilizações de apoio ao movimento operário romperam seus portões e alcançaram toda a cidade, envolvendo diferentes movimentos sociais, como visto nas caravanas das fábricas ocupadas a Brasília, sendo a primeira em 2003, seguida por uma segunda, em junho de 2004, ambas em conjunto com o MST. Juntas as fábricas somavam 1000 operários, aos quais se juntaram em poucos meses os cerca de 70 trabalhadores da Flaskô.

Marcha a Brasília para exigir de Lula a garantia dos empregos. Créditos: Setor de mobilização da Flaskô, acervo do Centro de Memória Operária e Popular – CEMOP.
Em 27 de setembro de 2003, aconteceu a Pré-Conferência Regional em Defesa do Emprego, dos Direitos, da Reforma Agrária e do Parque Fabril Brasileiro, na Flaskô, em Sumaré-SP, e em seguida a luta por direitos ganhou caráter nacional com a I Conferência Nacional em Defesa do Emprego, dos Direitos, da Reforma Agrária e do Parque Fabril Brasileiro, realizada de 3 a 5 de outubro de 2003, na Cipla, em Joinville-SC, que reuniu 531 delegados de 7 estados. Entre as inúmeras decisões desse evento, o destaque fica para a construção de um Comitê Nacional de Continuidade da Conferência, que seria o germe de uma futura coordenação nacional do movimento.
A carta da Conferência expressou: “Cada fábrica fechada é um túmulo de postos de trabalho onde são sepultadas as esperanças de uma vida digna (…). Por isso, os trabalhadores têm o direito de ocupar as fábricas” (Revista do CEMOP, 2012, p. 74).
A segunda Conferência, realizada em julho de 2004 na sede da CUT em São Paulo, reafirmou: “Toda fábrica quebrada é uma fábrica que tem de ser ocupada e estatizada. ” Já a terceira Conferência Nacional, de 16 a 18 de dezembro de 2005, em Joinville, reforçou a discussão central do movimento das fábricas ocupadas: “Só com a luta em defesa de cada emprego, de cada conquista, é que surgirá uma saída para toda a humanidade. ”
Internacionalismo e ações de solidariedade
Em 27 de outubro de 2005, sob a hospitalidade da Revolução Venezuelana, os operários das fábricas ocupadas no Brasil se reuniram com trabalhadores de 235 fábricas de nove países da América Latina durante o 1º Encontro Latinoamericano de Empresas Recuperadas em Caracas. Nesse evento, foi assinado um acordo comercial entre a Pequiven (Petroquímica Venezuelana, empresa estatal) e o movimento das Fábricas Ocupadas do Brasil para o fornecimento de matérias-primas, rompendo os bloqueios enfrentados pelas fábricas brasileiras, e enviando técnicos brasileiros para o projeto Petrocasa, destinado à construção de casas populares com material plástico na Venezuela.
Em 8 de dezembro ocorre o Encontro Pan-Americano em Defesa do Emprego, dos Direitos, das Reforma Agrária e do Parque Fabril Brasileiro. O evento contou com 691 delegados representando entidades, movimentos, organizações e partidos de 12 países, incluindo representantes de centrais sindicais como a CUT (Brasil), COB (Bolívia), UNT (Venezuela) e PIT-CNT (Uruguai). Nesta histórica reunião, uma assembleia dos trabalhadores da Cipla, na presença dos delegados do Encontro, aprovou a redução da jornada de trabalho, originalmente de 44 horas semanais, para 30 horas semanais.

Encontro Pan-Americano em Defesa do Emprego, dos Direitos, da Reforma Agrária e do Parque Fabril em 2006, dentro da Cipla Ocupada. Foto: Antônio Hélio Pereira e Silvia Agostini, Acervo do Movimento das Fábricas Ocupadas.
Para consolidar essa rede de solidariedade e resistência, em junho de 2009, ocorreu o 2º Encontro Latinoamericano de Empresas Recuperadas, também em Caracas. O evento reforçou a luta coletiva dos trabalhadores da América Latina, que buscavam alternativas viáveis para suas realidades econômicas e sociais.
Apesar das constantes mobilizações, o governo Lula não atendeu às principais demandas do movimento brasileiro, deixando de assumir as fábricas. Em contrapartida, o governo da Venezuela, sob a liderança de Hugo Chávez, adotou uma política de nacionalizações e com ênfase na expropriação de indústrias ocupadas, em sistema de cogestão com os trabalhadores. Essa diferença nas abordagens governamentais acentuou a solidariedade entre os trabalhadores das fábricas ocupadas no Brasil e as iniciativas do governo venezuelano, demonstrando a força do internacionalismo no movimento e a defesa da bandeira política: “Se é possível na Venezuela, é possível no Brasil! ”
A longa luta e a intervenção judicial
A trajetória de luta dos trabalhadores da Cipla, Interfibra e Flaskô foi marcada por desafios contínuos. Em 31 de maio de 2007, uma intervenção judicial nas fábricas ocupadas em Joinville-SC derrubou o controle operário, afetando o coração do movimento e os principais encontros, o que prejudicou a integração internacionalista construída ao longo dos anos, conforme relata Vinícius Camargo, em seu livro “Vila Operária e Popular – Um terreno e uma fábrica ocupados: 10 anos de luta”:
No dia 31 de maio de 2007 o Movimento das Fábricas Ocupadas sofreu um golpe mais violento. Por decisão judicial, com 150 policiais federais fortemente armados, deu-se a intervenção federal da Cipla e Interfibra. Nos dias seguintes, com a presença da polícia na fábrica, todos os representantes eleitos do conselho de fábrica da Cipla foram demitidos por justa causa. (CAMARGO, 2015, p. 113).
Nesse mesmo período, a primeira fábrica do programa Petrocasa foi inaugurada na Venezuela, simbolizando uma alternativa à crise habitacional venezuelana e dando mais uma mostra do que pode a solidariedade internacional da classe trabalhadora e o controle operário.
De 6 a 16 de novembro de 2007, Serge Goulart, coordenador do Conselho das Fábricas Ocupadas, viajou à Espanha, em parceria com a Corrente Marxista Internacional, para compartilhar a experiência das ocupações e denunciar a intervenção. Em 15 de dezembro de 2007, houve um encontro na Flaskô exigindo o fim da intervenção nas fábricas, e em 4 e 5 de julho de 2008, foi organizado um Tribunal Popular que resultou na condenação do governo e do interventor, caracterizando a ação como um crime contra a classe trabalhadora. Em junho de 2009, o 2º Encontro Latinoamericano de Empresas Recuperadas reafirmou a resistência e a solidariedade entre os trabalhadores da América Latina.
A luta internacionalista das fábricas ocupadas e sua relevância contemporânea
A ocupação das fábricas foi um movimento político muito além da busca pela preservação de empregos: tratou-se de uma articulação política da classe trabalhadora em âmbito internacional. Há muitos diferentes encontros nacionais e internacionais que debatem movimentos de empresas recuperadas. O diferencial deste movimento e dos encontros que promoveu e são aqui relatados é seu evidente caráter classista e revolucionário. Na Flaskô, que seguiu funcionando sob controle operário até 2019, o apoio internacional sempre ocorreu e foi essencial para sua sobrevida.
Assim, a mobilização na Cipla, Interfibra e Flaskô e outras que as seguiram refletiu a interconexão entre as lutas dos trabalhadores na América Latina e serviu como inspiração para iniciativas que superaram fronteiras, defendendo direitos trabalhistas e justiça social em um contexto de crescente desigualdade, próprio do sistema capitalista.
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Para saber mais:
CAMARGO, Vinícius Martins de. Vila Operária e Popular. Um terreno e uma fábrica ocupados: 10 anos de luta. Sumaré: Edições CEMOP, 2015, 190 p.
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Dossiê 10 anos do Movimento das Fábricas Ocupadas. Revista do CEMOP, [S.l.], n. 4, out. 2012.
NASCIMENTO, Janaína Quiterio do. Fábrica quebrada é fábrica ocupada; fábrica ocupada é fábrica estatizada: a luta dos trabalhadores da Cipla e da Interfibra para salvar mil empregos. [S.l.: s.n.], 2004, 147 p.
PRATA, Rafael. Ventos de esperança: os encontros do movimento das fábricas ocupadas. Disponível em: https://marxismo.org.br/ventos-de-esperanca-os-encontros-do-movimento-das-fabricas-ocupadas/. Acesso em: 24/11/2024
Nota sobre a autora
Janaína Quiterio do Nascimento é jornalista, graduada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), e especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (CESIT – Unicamp). Além disso, possui especialização em Jornalismo Científico (LABJOR – Unicamp). Atuou como jornalista na Cipla durante o período de controle operário e é autora do primeiro livro sobre o movimento, intitulado “Fábrica quebrada é fábrica ocupada, fábrica ocupada é fábrica estatizada” (2004).
Para citar este artículo:
Janaína Quiterio do Nascimento. O internacionalismo no Movimento de Ocupação de Fábricas na América Latina. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 8, núm. 35, Producción fabril para la producción de la vida. A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2025.