O caso da Vila Operária e Popular da Flaskô
Por Vinícius Camargo |
CRÍTICA URBANA N. 35 |
A história de nossas grandes cidades é marcada pelo processo de industrialização, mesmo quando tardia e sob um capitalismo dependente, como na América Latina. Fenômenos como reestruturações produtivas, relocalizações e a desindustrialização de certas regiões não poderiam, portanto, deixar de marcar profundamente nossas cidades.
Assim, um movimento que se colocou contra o processo de desindustrialização, contra o desemprego e em defesa do parque fabril é especialmente relevante para pensar a questão urbana. A Flaskô, empresa de embalagens plásticas situada no município de Sumaré, estado de São Paulo, foi ocupada em 2003 e fez parte do Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO). Para além da importância das ocupações de fábrica no movimento operário, a Flaskô tem uma particularidade. Sob controle operário, ela deixou uma marca permanente no território da periferia da Região Metropolitana de Campinas, segunda maior do estado e uma das mais importantes do país: a Vila Operária e Popular (VOP).

Passeata dos trabalhadores da Flaskô pelas ruas de Sumaré – São Paulo. Créditos: Setor de movilização da Flaskô, acervo do Centro de Memória Operária e Popular – CEMOP
Em 2019, o controle operário foi derrotado com um corte de energia elétrica definitivo. Após uma intervenção judicial a pedido do governo Lula em 2007, que utilizou 150 homens fortemente armados da Polícia Federal para destituir a comissão de fábrica eleita na Cipla e Interfibra – maiores fábricas do movimento, com 1000 operários -, a Flaskô conseguiu sobreviver, mas seus cerca de 70 trabalhadores viveram anos de isolamento e duras lutas.
Embora o capital tenha vencido a batalha, ela produziu uma cicatriz no mapa da cidade. Uma ocupação do terreno ao lado da fábrica em 2005, em associação com a população carente de moradia da região, possibilitou a construção da Vila Operária e Popular, resultando, cerca de 18 anos depois, na regularização de 564 unidades habitacionais.
A Vila Operária e Popular e a questão urbana
Sumaré é uma cidade industrial na periferia da região metropolitana, com uma população pobre e condições urbanas precárias. A Flaskô está na periferia dessa cidade, onde a luta pela sobrevivência inclui, naturalmente, a luta por uma moradia própria, fugindo do aluguel. A propriedade privada da terra, porém, é questionada neste movimento, visto que quem detinha a posse, os trabalhadores da fábrica, não eram proprietários.
Toda ocupação de fábrica coloca em questão quem é o verdadeiro dono dos meios de produção: o capitalista ou a classe que a construiu e que move as máquinas? Na Flaskô, a questão alcançou outros campos: entendendo o espaço urbano como produto do trabalho social, como meio de produção e de reprodução social, a quem deve pertencer senão aos que produzem?
Tais perguntas marcaram aquele movimento de moradia que não nasceu gêmeo – porque surgiu quase dois anos após a ocupação da fábrica – mas que, porém, desenvolveu-se como uma espécie de irmão siamês. Ambos dividiram um mesmo coração e um mesmo centro nervoso, no âmago do primogênito: uma direção política experiente e dotada de um programa claro e radical.

Vista aérea da fábrica e a Vila Operária e Popular. Fonte: Google
O terreno onde estão a Flaskô e a VOP estava escriturado em nome da empresa Cipla. Por outro lado, o controle da fábrica estava nas mãos dos trabalhadores. Como consequência, tinham o controle do terreno que, tal como as máquinas da fábrica, estava alienado como garantia de dívidas trabalhistas, previdenciárias e de outros tipos. A área vazia ao lado da fábrica, com 100 mil m2, por anos foi usada para desova de cadáveres por criminosos, roubo de terra para aterro e plantio de eucaliptos.
A primeira solução, vinda do judiciário, do executivo ou do legislativo, sempre tinha por condição a criação de uma cooperativa para a assunção das ações e, com elas, das dívidas do patrão. Porém, o movimento se recusava a tornar-se proprietário (um grupo de pequenos sócios capitalistas) e exigia que a solução fosse verdadeiramente coletiva, convertendo o parque fabril (e o terreno) em patrimônio público, estatal, sob controle operário.

Plano do projeto de desenvolvimento e construção da Vila Operária e Popular. Foto cedida pelo autor.
A bandeira da estatização sob controle operário permitiria que a fábrica atendesse a uma outra função social. Mas ia na direção contrária aos interesses do governo do PT que, embora fosse um partido de origem no movimento operário, foi eleito em ampla aliança com partidos historicamente comprometidos com as forças do capital no Brasil e sob a base de um compromisso de conciliação de classes. Lula disse que a Estatização não estava no cardápio.
Os trabalhadores não concordavam. Ainda mais depois da ação concreta de Hugo Chávez, que estatizou (nacionalizou) parte das fábricas ocupadas pelos trabalhadores e depois da conquista dos trabalhadores bolivianos com a re-nacionalização do gás e do petróleo, sob o governo de Evo Morales.
Das lições da Flaskô, em seus primeiros anos os moradores da Vila aprenderam a se organizar de forma democrática: assembléias, representantes de quadra eleitos, coordenação eleita, mutirões, atos, etc. Associadas e, apesar de sua luta sem qualquer amparo governamental, Flaskô e os novos ocupantes do terreno construíram um bairro, colocando em cheque a política quase nula da prefeitura para a área habitacional. Um galpão vazio da fábrica abrigou encontros estudantis, apoiou movimentos de moradia desalojados e foi por anos usado por uma cooperativa de reciclagem. Em seu espaço, a Flaskô implantou a Fábrica de Esporte e Cultura e promoveu diversos festivais de arte.
A luta por infra-estrutura e serviços públicos
Quem passasse pela portaria da Flaskô nos primeiros anos de ocupação, encontraria sempre moradores da região com garrafões, abastecendo-se de água potável em torneiras que eram disponibilizadas para acesso livre à água de um poço artesiano da própria fábrica, que ficava próximo da nascente do córrego no fundo do vale no terreno onde hoje se encontra a VOP. Os trabalhadores que controlavam a fábrica disponibilizavam aquele recurso para toda a população, entendendo que a nascente não poderia ser propriedade privada. Com o crescimento da VOP e a ausência de rede de coleta e tratamento de esgoto, houve contaminação da área da nascente e a distribuição foi interrompida.
A instalação de energia elétrica (sob concessão privada) ocorreu já em 2006, mas a luta pela água (fornecida por empresa pública) enfrentava resistência do governo municipal e passou por diversas manifestações e mesmo uma ocupação do prédio da prefeitura.
As torneiras públicas da fábrica ficavam longe. O governo municipal foi pressionado a instalar pontos comunitários de fornecimento, que eram conectados de forma clandestina formando uma verdadeira rede de água, até a conquista da rede definitiva. A disponibilidade de água fazia a Vila florescer.
O movimento conquistou não apenas o fornecimento de água para a própria Vila, mas a aprovação de uma lei que obriga o município a instalar água em todas as ocupações por moradia, abrindo o caminho para novos movimentos e combates futuros.

Falskô e Vila Operária e Popular. Autor: Fernando Martins, do libro de fotos «Flaskô a luta de uma fábrica sob controle operário há dez anos»
A questão ambiental
A Vila foi projetada com ruas largas, duas praças, preservação das árvores nativas (jatobá e abacateiro), lotes espaçosos, etc. O projeto urbanístico havia reservado, conforme a legislação, a faixa de recuo às margens do córrego no fundo do vale, para a sua preservação.
Mas dentro da ocupação ocorreu outra ocupação, na área próxima ao córrego, a revelia da direção do movimento. Com isso, o Ministério Público (MP), acionou a Prefeitura, pedindo a remoção das famílias ocupantes da área próxima ao córrego, uma Área de Proteção Ambiental (APP). A prefeitura atendeu o pedido e atacou o movimento. Além de a chamada APP ser uma área com despejo de esgotos anterior à ocupação, sempre negligenciada, a ação tinha por base as restrições de uma legislação já superada. O MP e a prefeitura exigiam a remoção das edificações que estivessem em um raio de 50 metros da área indicada como a nascente e de 30 metros do eixo do córrego. Mas essa restrição tinha sido revista pelo novo Código Florestal, já vigente. Para atacar o movimento, o judiciário descumpria sua própria lei.
Ao final da lista de motivos apresentados na sentença da intervenção judicial na Cipla, pode-se ler: “Imagina se a moda pega”! O ponto “a” dos termos apresentados pelo juiz no caso da APP da VOP vai no mesmo caminho: “não posso deixar a ocupação crescer”.
Após o fechamento da fábrica, a garantia da permanência no terreno só poderia ocorrer com a regularização fundiária, conquistada em 2023. Com ela veio o compromisso da instalação da rede de esgoto, em andamento, e a posterior pavimentação.
O bairro, as ruas e a memória da classe trabalhadora
Em um país cujas avenidas têm, tantas vezes, nome dos algozes do povo, ditadores e governantes reacionários de todo tipo, a VOP e a Flaskô fizeram aprovar na Câmara dos Vereadores de Sumaré um projeto que deu às suas ruas nomes de trabalhadores e apoiadores que se notabilizaram na luta, desde a ocupação da fábrica até a regularização, mas que faleceram durante este período. Outra parte das ruas da Vila recebeu nomes de importantes mulheres da história da luta de classes do Brasil. Inverte-se a relação típica e mostra-se em quantos diferentes âmbitos da vida social pode se manifestar a diferença entre o controle operário e o controle burguês sobre a produção.
Um evento em julho de 2023, com a entrega de placas simbólicas com os nomes das ruas às famílias dos trabalhadores homenageados marcou também os 20 anos do Movimento das Fábricas Ocupadas.
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Para saber mais:
CAMARGO, Vinícius Martins de. Vila Operária e Popular: Uma fábrica e um terreno ocupados, 10 anos de luta. CEMOP: Sumaré, 2015.
Nota sobre o autor
Vinícius Martins de Camargo é arquiteto e urbanista, formado pela UNESP, e mestrando na FAU-USP. Foi o autor do projeto urbanístico da Vila Operária e Popular, membro da coordenação do movimento em seu período inicial, além de trabalhador da Flaskô, entre 2005 e 2006. É autor do livro “Vila Operária e Popular – um terreno e uma fábrica ocupados: 10 anos de luta”.
Para citar este artículo:
Vinícius Martins de Camargo. A ocupação de fábricas e a questão urbana. O caso da Vila Operária e Popular da Flaskô. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol. 8, núm. 35, Producción fabril para la producción de la vida. A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2025.