Por Samuel Thomas Jaenisch |
CRÍTICA URBANA N.24 |
Nas últimas décadas as políticas de habitação social na América Latina têm apostada na produção em massa de moradia, como forma de reverter o quadro de precariedade habitacional existente nas grandes cidades. Políticas cada vez mais orientadas por uma lógica empresarial e sem mecanismos de participação popular. Mas será possível produzir cidades mais inclusivas e democráticas dessa forma?
O governo brasileiro implementou nas duas últimas décadas um dos maiores programas de habitação social da história do país – o Programa Minha Casa Minha Vida – retomando a agenda de investimentos públicos no setor após um hiato de quase trinta anos. Ele foi responsável pela construção de aproximadamente quatro milhões de moradias para famílias de baixa renda, principalmente nas grandes cidades, onde parte expressiva da população vive em condições de extrema precariedade habitacional. Mas diversas pesquisas acadêmicas apontam que apesar do grande volume de moradias produzidas, seus resultados não conseguiram reverter esse quadro, tendo, em muitos casos, reforçado as desigualdades socioespaciais ou mesmo a vulnerabilidade das famílias atendidas.
A forma como o programa foi conduzido levantou diversas críticas, principalmente por sua tendência a segregar os espaços populares de moradia, deslocando a população de baixa renda para conjuntos habitacionais construídos em frentes de expansão urbana na periferia, alijados das áreas mais dinâmicas da cidade[1]. Locais desprovidos de serviços públicos básicos e com acesso restrito às redes de transporte, gerando dificuldades de adaptação para seus moradores, inclusive inviabilizando a permanência de muitos deles. O processo de reassentamento levou os moradores deslocados a perderem suas fontes de subsistência pela impossibilidade de acessar os polos de emprego e renda, apresentando dificuldades para se integrar à nova vizinhança, ou mesmo tendo suas redes de apoio e sociabilidade desfeitas, dentre várias outras situações que fragilizaram suas condições de existência[2].
Estes problemas decorrem da forma como o programa foi conduzido pelo governo. Sua produção foi orientada exclusivamente por metas quantitativas, buscando produzir de forma rápida e padronizada o maior número possível moradias, sem considerar a complexidade do déficit habitacional do país. A sociedade civil esteve apartada da formulação e execução do programa, sem mecanismos de participação popular que pudessem incidir sobre os processos decisórios ou mesmo incorporar demandas concretas da população atendida. Questões de suma importância para discutir os desafios enfrentados pelas políticas de habitação social na América Latina nos tempos atuais, que devem contribuir para potencializar processos emancipatórios e produzir cidades mais justas e inclusivas.

Programa Minha Casa Minha Vida na área metropolitana do Rio de Janeiro. Foto: Samuel Thomas Jaenisch, 2014.
Política de habitação ou política de desenvolvimento econômico?
A ausência de participação popular se deve grande medida ao contexto dentro do qual o Programa Minha Casa Minha Vida foi formulado. O programa foi uma das principais bandeiras da coalização de centro-esquerda comandada pelo Partido dos Trabalhadores, que governou o país entre 2003 e 2016, tendo sido lançado no segundo mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como parte de um conjunto de medidas para acelerar os índices de crescimento econômico do país.
O setor da construção civil teve um papel central nesse cenário, por sua capacidade de criar postos de trabalho, estimular cadeias produtivas complementares, além de aumentar a arrecadação fiscal. Por isso interessava ao governo que o Programa Minha Casa Minha Vida produzisse de forma rápida, visto que um aumento na produção imobiliária representava também um incremento na demanda por insumos vindos de outros setores da economia (extração mineral, metalurgia, siderurgia, produção de máquinas) com reflexos diretos sobre os indicadores macroeconômicos[3]. Com isso o programa foi colocado em um impasse entre sua função social e seu papel econômico. De um lado sendo apresentado pelo governo como uma medida para melhorar a condição de vida da população urbana e que respondia a uma demanda histórica dos movimentos sociais, de outro sendo conduzido como uma estratégia econômica que acabou por atender principalmente aos interesses dos grandes construtoras e empreiteiras.
Essa contradição marcou a atuação da coalização de centro-esquerda durante todo o período em que esteve à frente do governo. Ela foi eleita com a promessa de avançar na diminuição das desigualdades sociais e na erradicação da pobreza, convergindo com as bandeiras defendidas pelo campo progressista. Mas precisou constantemente rever suas posições para atender aos interesses das alianças políticas formadas para garantir a governabilidade, em nome de um projeto conciliador que evitasse qualquer confronto mais direto com interesses do capital[4]. Isso fez com que as políticas sociais implementadas nesse período tenham promovido melhoras na qualidade de vida da população mais pobre, mas permanecido insuficientes para garantir processos consistentes e duradouros de transformação social.
A importância do protagonismo popular
O exemplo do Programa Minha Casa Minha Vida (e de outros programas semelhantes de habitação social implementados na América Latina) demostram que não basta construir um grande volume de unidades habitacionais para resolver a crise urbana que vêm se agravando nas últimas décadas. É preciso pensar em soluções de moradia que estejam conectadas com as dinâmicas de vida de seus moradores, reconhecendo a cidade como um espaço comum produzido de forma coletiva e horizontal, de forma a resistir à mercantilização exacerbada promovida pelo avanço da lógica neoliberal.
O programa foi formulado indo na direção contrária, ao deixar todo o poder de decisão à cargo das empresas privadas responsáveis pela construção. Visando maximizar seus lucros, elas se limitaram a atender aos padrões mínimos de habitabilidade definidos pela legislação, padronizando sua produção, adotando as mesmas soluções construtivas, usando materiais de péssima qualidade, além de terem priorizado terrenos mais baratos em áreas sem qualquer infraestrutura urbana. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, onde existe uma diversidade de situações de precariedade habitacional, o programa acabou se mostrando bastante limitado. Ele deixou de considerar elementos importantes como o conforto ambiental, a adequação aos diferentes arranjos familiares, o uso dos espaços domésticos para geração de renda, a possibilidade de expansão das casas e a flexibilização das plantas, o diálogo com os bairros do entorno, dentre outros.
O programa chegou a criar uma linha de ação voltada para atender as demandas dos movimentos sociais, denominada de Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, que apresentou um contraponto interessante. Neste caso, a condução do processo se dava a partir da organização dos próprios moradores que iam ocupar o conjunto habitacional, através de um processo coletivo que se estendia pelas etapas de elaboração do projeto e construção das moradias, privilegiando processo de autogestão. Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, essa produção apresentou resultados muito mais satisfatórios que a produção padrão do programa, principalmente no que diz respeito ao sentimento de pertencimento dos moradores em relação ao seu novo local de moradia e à qualidade dos imóveis construídos[5]. Por envolver processos coletivos de decisão, os moradores tiveram mais liberdade para definir questões objetivas (planta do imóvel, tipo de material utilizado, áreas coletivas do conjunto habitacional) e mais força para apresentar suas demandas frente ao poder público. Essa forma de organização também ajudou a promover processos pedagógicos de formação política junto aos moradores, levando a uma maior conscientização pela luta por moradia e pela democratização da cidade.

Assembleia Popular – Programa Minha Casa Minha Vida Entidades. Foto: Thais Velasco, 2017
O caso do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades demonstra que o envolvimento da população na condução das políticas públicas pode trazer contribuições importantes em vários âmbitos. Mas infelizmente esta linha de ação correspondeu a apenas 4% do total de recursos que foram investidos no programa[6]. De maneira geral predominou a lógica empresarial, limitada ao cumprimento das metas quantitativas estabelecidas pelo governo, alheia a qualquer participação popular. Um debate que deve ser retomado para pensar políticas futuras de habitação social, em especial no caso das grandes cidades brasileiras, onde a universalização do acesso à moradia ainda é um desafio.
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Notas
[1] SANTO AMORE, Caio et alt. (org.). Minha casa… e a cidade? Avaliação do Programa Minha, Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
[2] CARDOSO, Adauto; LAGO, Luciana. Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana do Rio De Janeiro: Impactos urbanos e sociais. Relatório final. Rio de Janeiro, 2015.
[3] ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
[4] SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[5] MEIRELLES, Ana Clara. Autogestão Habitacional no Rio de Janeiro. IN: D’OTTAVIANO, Camila. Habitação, autogestão e cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021.
[6] D’OTTAVIANO, Camila. Habitação, autogestão e cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2021.
Nota sobre o autor
Samuel Thomas Jaenisch – Sociólogo. Professor do Instituto de Investigação e Planificação Urbana e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para citar este artículo:
Samuel Thomas Jaenisch. Os desafios da participação nas políticas de habitação social. Reflexões a partir do caso brasileiro. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.5 núm. 24 Participación: mito o realidad. A Coruña: Crítica Urbana, junio 2022.