Por Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sánchez y Carlos Vainer |
CRÍTICA URBANA N.14
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“Entre agosto de 2002, quando o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar os Jogos Pan-americanos de 2007, e agosto de 2016, quando os XXXI Jogos Olímpicos de Verão foram encerrados, a cidade experimentou o que vem sendo chamado vulgarmente de a Era dos Megaeventos.”
A implementação dos grandes projetos urbanos incluídos nos pacotes das candidaturas dos megaeventos esportivos implicou a remoção de dezenas de milhares de pessoas e conflitos sociais se multiplicaram opondo moradores afetados, movimentos sociais e múltiplos apoiadores contra os promotores dos megaeventos: o Poder Público (especialmente, a Prefeitura Municipal) e seus parceiros privados – empreiteiras de obras públicas, incorporadores imobiliários, grande mídia corporativa -, turbinados pelos interesses comerciais internacionais que constituem o que se poderia chamar de indústria global dos megaeventos. Embora, na grande maioria dos casos, os resultados desses embates tenham sido desfavoráveis aos moradores de baixa renda atingidos, muitos conflitos detonaram novas dinâmicas e, ocasionalmente, novas estratégias de luta em um conturbado contexto político e econômico nacional, que culminou com o golpe parlamentar que destituiu a presidente eleita.

Demolições da Vila Autódromo e do prédio do Parque Olímpico. Foto: Paula Laiber, PDU/PPGAU/UFF.
Como mostram pesquisas recentes1, alguns assentamentos populares ameaçados de remoção desenvolveram estratégias que projetavam futuros alternativos à destruição programada, quase sempre apresentada e aceita como inevitável. Ao invés de limitar a resistência à reivindicação de ações de mitigação ou indenização justa, movimentos e articulações sociais, associações de moradores e apoiadores produziram dossiês informativos, laudos técnicos que confrontavam estudos das prefeituras, eventos comunitários e, também, planos e projetos urbanos que desafiavam os projetos do poder público e seus parceiros.
Com base em levantamentos realizados no Observatório de Conflitos Urbanos do Rio de Janeiro2, no acompanhamento de eventos organizados por movimentos sociais e no envolvimento na assessoria a moradores ameaçados de remoção, apresentaremos o que chamamos de “planejamento conflitual” a partir de uma reflexão sobre o processo de elaboração do Plano Popular da Vila Autódromo e sua contribuição para a luta de moradores ameaçados pela construção do Parque Olímpico do Rio de Janeiro. Nosso tema é o conflito urbano e seu papel e lugar na vida urbana, assim como as possibilidades e limites de práticas de planejamento em contexto de conflito.
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Conflito e Planejamento Conflitual
Nos últimos anos, difundiram-se na América Latina concepções, modelos e tecnologias de promoção da “prevenção e mediação de conflitos” (conflict resolution). Mas, por que razão deveriam ser os conflitos vistos como portadores de danos e, por esta razão, ser evitados?
Há pelo menos duas grandes correntes no pensamento sociológico acerca do lugar e papel do conflito na vida social. De um lado, uma visão normativa concebe o conflito como manifestação de disfunção social. Em síntese, o conflito indicaria que algo está funcionando errado, que há um desequilíbrio sistêmico. Essa a perspectiva da escola funcionalista parsoniana, que dominou a academia anglo-saxônica na segunda metade do século passado, e ainda exerce grande influência, que vê o conflito como sintoma de uma disfuncionalidade sistêmica, potencialmente ameaçador3.
De outro lado, uma visão antípoda afirma que um sistema é tanto mais pujante e dinâmico quanto mais capaz de gerar conflitos. É famosa a passagem com que Marx e Engels, no Manifesto Comunista de 1848, afirmam que “toda la historia de la sociedad humana, hasta la actualidad es una historia de lucha de clases”4. Aqui, o conflito, entendido como luta de classes, é constitutivo da vida social e positivado como portador da possibilidade de transformações radicais5.

Assembleia Popular em 2011 (Coleção Plano Popular Vila Autódromo ETTERN/IPPUR/UFRJ, GPDU/PPGAU/UFF).
Em movimento paralelo à difusão da conflict resolution, progressivamente se impuseram concepções em que a cidade do mundo globalizado é pensada à imagem de empresas capitalistas em concorrência no mercado … de cidades6. A cidade competitiva deve ser coesa, livre de conflitos e fazer do consenso a arma para enfrentar unida a disputa por capitais e turistas. Há que superar os enfrentamentos entre atores relacionados aos conflitos do dia a dia7 e encontrar um consenso público-privado operativo8.
O banimento da política e do conflito constitui elemento estratégico do planejamento estratégico urbano, “projeto consensual que transcenda um pouco o campo das filiações político-partidárias e que possa garantir aos investidores a permanência de certas escolhas”9.
Não foi difícil combinar as propostas, modelos, retóricas e tecnologias de “prevenção e mediação de conflitos” e de planejamento estratégico competitivo urbano. No Brasil, sob o governo federal, foi constituído um Grupo de Prevenção e Negociação de Conflitos Fundiários e, em várias cidades, organismos para-judiciais, organizações policiais e organizações não governamentais passaram a promover processos de “resolução negociada de conflitos”, que podiam ter como objeto desde disputas entre vizinhos até processos de remoção de moradores em áreas de interesse do capital imobiliário ou alvo de grandes projetos.
Contudo, os conflitos não desapareceram. No Rio de Janeiro, a primeira cidade latino-americana a ostentar seu Plano Estratégico, elaborado com a consultoria daqueles que traziam para os trópicos a experiência vitoriosa de Barcelona, os conflitos tenderam a se multiplicar e agudizar face aos projetos urbanos que deveriam preparar a cidade para receber grandes eventos esportivos.
Neste contexto, emergiu uma experiência original de planejamento autônomo, nos moldes do que alguns autores vêm chamando de planejamento “radical” ou “insurgente”10 e que nós temos preferido designar de “planejamento conflitual”. Trata-se de processos, metodologias, práticas que associam e subordinam os ritmos e modos de planejar espaços urbanos aos processos de lutas.
O Planejamento Conflitual concebe e aciona a conflituosidade urbana como fundamento, informação e dinâmica sobre a qual, e a partir da qual, se constroem políticas, planos e projetos. E, também, talvez sobretudo, sobre a qual, e a partir da qual, se constrói um novo sujeito planejador – um coletivo social, capaz de uma agência política na cidade.
A experiência de planejamento conduzido pela Associação de Pescadores e Moradores da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, é um exemplo das riquezas e potencialidades de processos conflituais na construção de uma nova cidade e de um novo modo de planejar.

Manifestação em frente à Associação de Moradores no dia de sua demolição em 2015. Foto: Gláucia Marinho.
A Vila Autódromo, o plano e o conflito: emergência e afirmação de um novo sujeito coletivo
Nós não somos uma ameaça ao meio ambiente, nem à paisagem nem à segurança de ninguém. Nós ameaçamos apenas aqueles que querem violar o nosso direito constitucional à moradia. Nós somos uma ameaça só para aqueles que querem especular com a terra urbana e para os políticos que servem aos seus interesses. Eles têm o plano deles, que quer nos apagar do mapa. Nós temos o nosso plano, que afirma o nosso direito de continuar a existir. Nossa história de luta agora tem continuidade no nosso Plano Popular.
Altair Guimarães, presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo em depoimento no vídeo Vila Autódromo: um bairro marcado para viver.
Em 2009, quando o Rio de Janeiro foi anunciado como sede dos Jogos Olímpicos 2016, a Vila Autódromo era um bairro popular com cerca de 1300 moradores, contíguo ao antigo autódromo da cidade, terreno onde seria construído o Parque Olímpico, principal cluster das Olimpíadas 2016. Tanto o autódromo quanto a Vila estavam localizados em área de propriedade do Governo do Estado do Rio de Janeiro na Barra da Tijuca, principal área de expansão da produção residencial para média e alta renda no Rio de Janeiro.
O consórcio que ganhou a licitação para o projeto imobiliário do Parque Olímpico foi formado por duas das maiores empreiteiras de obras públicas do Brasil – Odebrecht e Andrade Gutierrez – e pela empresa Carvalho Hosken S.A., grande proprietária de terrenos na Barra da Tijuca, especialmente nas vizinhanças do projeto. O que procuraram contestar os moradores da Vila Autódromo quando os tratores das remoções foram se tornando, a cada dia, mais ameaçadores? E como construíram essa experiência?
As estratégias de resistência da Vila Autódromo acionaram recursos variados que agregaram desde a mobilização interna até a cooperação de apoiadores que abrangeram movimentos e articulações sociais, mídias alternativas, representantes de mandatos legislativos municipais, assessorias técnicas, ativistas individuais e instituições públicas, como a Defensoria Pública do Estado.
Entre as estratégias desenvolvidas pelos moradores se destaca a elaboração do Plano Popular da Vila Autódromo, com assessoria de duas universidades federais, que buscava mostrar a compatibilidade entre a permanência da comunidade e a implantação do Parque Olímpico. Como as justificativas oficiais se apoiavam em argumentos supostamente “técnicos”, a universidade – uma autoridade com reconhecimento social no campo científico e técnico – era vista pelos moradores como um apoio necessário para atestar a viabilidade da permanência.
O Plano Popular rejeitava a remoção involuntária de qualquer morador e sua elaboração envolveu a realização de pesquisas de campo e um processo de discussão que culminou na produção de propostas nas áreas de habitação, saneamento, infraestrutura, meio ambiente, serviços públicos, desenvolvimento cultural e comunitário, assim como na definição de estratégias de organização popular e comunicação11.
No planejamento da Vila Autódromo, foram o contexto e a natureza do conflito que orientaram o processo de planejamento, o conteúdo das propostas e mesmo o desenho dos projetos12. Por isso pode ser lido como um processo de “planejamento conflitual”, em contraposição aos processos de planejamento participativo produzidos nos espaços institucionais, mas, também, a determinados processos autônomos, qualificados como “insurgentes” que se apoiam em documentos completos, pouco alterados ao longo do tempo.
No caso da Vila Autódromo, a dinâmica do conflito levou os sujeitos insurgentes a definir e atravessar novos espaços políticos e escalas, na busca de reconhecimento da luta. Lideranças locais procuraram espaços de enunciação e legitimação, e participaram em sessões nacionais, como a da Comissão de Direitos Humanos do Senado, em setembro de 2015, e internacionais, como a da Assembleia das Nações Unidas, em Genebra, em junho de 2016. Por sua vez, atos públicos foram realizados em espaços urbanos de grande visibilidade na cidade.
Ao longo dos anos, houve permanente movimento dos sujeitos do conflito entre os “espaços convidados” –espaços formais de participação das instituições públicas, onde buscaram alargar as chances de negociação do Plano – e os “espaços inventados”- criados, forjados nas lutas e ocupações13.
O primeiro documento com os princípios e propostas principais do Plano Popular foi concluído apenas dois meses após o início do processo de planejamento e o embate permanente com a Prefeitura exigiu ajustes na temporalidade incerta, nas etapas imprecisas e imprevistas do processo de luta dos moradores.
De acordo com a dinâmica do conflito, o combate enfatizou o campo jurídico – com o suporte da Defensoria Pública, – ou a promoção de articulações políticas com outros movimentos de atingidos pelos megaeventos, além de articulações sociais mais amplas, com a realização de eventos e manifestações públicas.
O aparato de produção simbólica, impulsionado pela coalizão de forças que comandou esse projeto de cidade promoveu a ‘parque tematização’ da cidade, uma espécie de “urbanalização”14 da “Cidade Maravilhosa” e, desde então, “olímpica”. O Plano Popular da Vila Autódromo buscou desfigurar esses códigos de poder e reconfigurar o território na luta15, se constituindo em oportunidade histórica não apenas para reconstruir o lugar – terra arrasada – mas também para inscrevê-lo num conjunto de relações e escalas que colocaram a Vila Autódromo como um caso emblemático conhecido e debatido no Brasil e em outros países, na defesa dos direitos humanos e do direito à moradia.
Ao final, quase todos os moradores foram violentamente removidos, ainda que parte expressiva das famílias tenha sido indenizada com valores próximos aos de mercado, fato inédito em processos de remoção de assentamentos populares no Rio de Janeiro. Mas, hoje, em 2020, vinte famílias resistentes e coesas até o fim – ainda que com variadas e alternantes divisões internas – ocupam casas construídas pela Prefeitura no coração da antiga Vila Autódromo, cercadas por um grande estacionamento vazio que cobre quase todo o espaço antigamente ocupado pela comunidade.
O caso da Vila Autódromo é uma importante referência para disputas na periferia urbana metropolitana pelo direito à moradia e à diversidade nas formas de viver na cidade. Em Vargem Grande, cerca de 15 quilômetros a noroeste, moradores se articularam e propuseram, em 2017, um Plano Popular que defende a agroecologia, a agricultura familiar e a preservação dos assentamentos populares em oposição à nova e elitista legislação municipal e a um projeto de parceria público-privada que desfigura a região. Mas isso já é outra história.
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Notas
1 Ver, por exemplo, Tanaka, G. “Planejar para Lutar e Lutar para Planejar”: Possibilidades e Limites dos planejamentos alternativos. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.
2 Ver em http://www.observaconflitosrio.ippur.ufrj.br/observa2019/fox/index.php
3 Parsons, T. Social classes and class conflicts in the light of recent sociological theory. The American Economic Review,1949.
4 Ver em https://www.marxists.org/espanol/m-e/1840s/48-manif.htm
5 Há também posições intermediárias. Simmel via o conflito como um elemento essencial da socialização (Simmel, 1903) e tanto ele quando Lipset (1985) consideram que a conflituosidade é virtuosa e dinâmica … sempre que e desde que se desenrole dentro de certos limites.
6 Vainer, C. “Pátria, Empresa e Mercadoria: Notas sobre a Estratégica Discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In Arantes, O.; Vainer, C.; Maricato, E. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando Consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 75-103.
7 Castells, M; Borja, J. “As cidades como atores políticos”. In Novos Estudos CEBRAP, n.45, julho/1996, p. 152-166.
8 Forn i Foxà, M. (1993). Barcelona: estrategias de transformación urbana y económica, s.l, mimeo.
9 Ascher, F. “Projeto público e realizações privadas: o planejamento das cidades refloresce”. In Cadernos IPPUR, ano VIII, n. 1, abril/1994, p. 83-96.
10 Miraftab, Faranak. Insurgência, planejamento e a perspectiva de um urbanismo humano. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (Online). Recife, V.18, N.3, p.363-377, set-dez 2016.
11 Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo. Plano Popular da Vila Autódromo: Plano de desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural. Rio de Janeiro: AMPVA, 2012.
12 Vainer, C.; Tanaka, G.; Oliveira, F. L.; Lobino, C.; Bienenstein, R.; Bienenstein, G.; Sánchez, F. O Plano Popular da Vila Autódromo: uma experiência de planejamento conflitual. Anais do XV ENANPUR. Recife: ANPUR, 2013.
13 Miraftab, F. Insurgent Planning: Situating Radical Planning in the Global South. In: “Planning Theory”, Vol.8, p. 32-50; SAGE Publications, 2009.
14 Muñoz, F. Urbanalización. Paisajes comunes, lugares globales. Barcelona: Gustavo Gilli, 2008.
15 Guterman, B.; Sánchez, F.; Laiber, P. Rio Olímpico 2016: Ciudad Maravillosa es la que lucha. In: Arico, G. Mansilla, J.A.; Stanchieri, M.L. Mierda de ciudad. Una rearticulación crítica del urbanismo neoliberal desde las ciencias sociales. Barcelona: Pollen Edicions, 2015.
Nota sobre los autores
Fabrício Leal de Oliveira. Arquitecto y Urbanista, Doctor en Planificación Urbana y Regional por la Universidad Federal de Río de Janeiro. Profesor del Instituto de Investigación y Planificación Urbana y Regional de la Universidad Federal de Río de Janeiro y investigador del Laboratorio Estado, Trabajo, Territorio y Naturaleza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).
Fernanda Sánchez. Arquitecta y urbanista, Doctor en Geografía Humana por la Universidad de São Paulo (IGEO / USP). Profesora titular de la Escuela de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad Federal Fluminense, es la líder del Laboratorio de Globalización y Metrópolis (GPDU-PPGAU-UFF).
Carlos Vainer. Economista, sociólogo, Doctor en Desarrollo Económico y Social / Université de Paris I – Panthéon/Sorbonne. Profesor titular del Instituto de Investigación y Planificación Urbana y Regional de la Universidad Federal de Río de Janeiro y Coordinador del Laboratorio Estado, Trabajo, Territorio y Naturaleza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).
Para citar este artículo: Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sánchez y Carlos Vainer. Planificación conflictual en la Ciudad Olímpica: la experiencia de Vila Autódromo, Río de Janeiro. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.3 núm. 14 Metrópolis, ¿única alternativa?. A Coruña: Crítica Urbana, septiembre 2020. |