Por Nelson Saule.
CRÍTICA URBANA n.2.
Questões para uma visão nacional e internacional do Direito à Cidade
Algumas questões precisam ser aprofundadas para uma consolidação de uma visão internacional do Direito à Cidade em nossos países e nossas cidades dentre as quais destacamos as seguintes:
Qual deve ser a compreensão do termo cidades no âmbito do Direito à Cidade? Para termos essa compreensão devemos considerar: o território (urbano e rural), as tipologias de cidades, o tamanho e a densidade populacional, a organização institucional (política e administrativa) das cidades. Por exemplo, no Brasil temos uma enorme limitação legal de compreensão de cidades que é definido como sede de Municípios pelo artigo 3º do Decreto-Lei no 311 de 1938: A sede do município tem a categoria de cidade e lhe dá o nome.
Quem são as pessoas que devem ser reconhecidos como titulares do Direito à Cidade, considerando os seguintes aspectos: geracional, nacionalidade, diversidade de habitantes que vivem, trabalham e usufruem das cidades, período de residência ou permanência na cidade?
Qual é a categoria do Direito à Cidade no campo dos direitos humanos? Individual, coletivo ou difuso?
Como as pessoas podem exercer o Direito à Cidade e para qual finalidade?
Qual deve ser o objeto ou bem de proteção legal e jurídica do Direito à Cidade? Em vários países como também no Brasil, temos cidades declaradas como de patrimônio histórico ou cultural que resultam numa proteção legal e jurídica para preservar as características dessas cidades.
A evolução da concepção internacional do Direito à Cidade
A visão da Carta Mundial do Direito à Cidade
Essas questões têm norteado a construção da visão do Direito à Cidade no âmbito internacional. Nos espaços de discussão e articulação sobre as questões urbanas, como nos Fóruns Sociais Mundiais, essas questões foram relevantes para a visão sobre esse direito contida na Carta Mundial do Direito á Cidade, bem como nos últimos anos na visão da Plataforma Global do Direito à Cidade e da Nova Agenda Urbana aprovada na Conferencia das Nações Unidas Habitat III, na cidade de Quito no ano de 2016.
A Carta Mundial do Direito à Cidade define esse direito como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. Quanto à sua classificação no âmbito dos direitos humanos, é definido como um coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes.
Uma evolução positiva na Carta Mundial do Direito à Cidade é reconhecer, como um componente desse direito, a cidade sem nenhuma forma de discriminação e a cidade que preserva a memória e sua identidade cultural.
Quanto à extensão do território para o exercício do Direito à Cidade é compreendido o território das cidades e o seu entorno rural.
Na Carta o conceito de cidade possui duas acepções. Por seu caráter físico, a cidade é toda metrópole, urbe, vila ou povoado que esteja organizado institucionalmente como unidade local de governo de caráter municipal ou metropolitano. Inclui tanto o espaço urbano como o entorno rural ou semi-rural que forma parte de seu território. Como espaço político, a cidade é o conjunto de instituições e atores que intervêm na sua gestão, como as autoridades governamentais, legislativas e judiciárias, as instâncias de participação social institucionalizadas, os movimentos e organizações sociais e a comunidade em geral.
Sobre a questão da titularidade são considerados cidadãos(ãs) todas as pessoas que habitam de forma permanente ou transitória as cidades.
A visão da Plataforma Global do Direito à Cidade
A Plataforma Global do Direito à Cidade é uma rede internacional que agrega redes e organizações internacionais da sociedade civil e de governos locais que promoveram uma mobilização e articulação durante o processo da Conferência das Nações Unidas do Habitat III para a visão do Direito à Cidade fosse incluída na Nova Agenda Urbana.
Na visão da Plataforma Global o Direito à Cidade tem a natureza de um direito humano coletivo/difuso conjugado com as funções sociais da cidade e da gestão democrática das cidades que permite a integralidade dos direitos humanos num determinado território com base nas normas internacionais de proteção dos direitos humanos.
Sobre a titularidade, o direito à cidade é o direito de todos os habitantes da presente e futuras gerações e adota a visão de cidadão contida na Carta Mundial que abrange tanto os habitantes permanentes como temporários.
A forma de exercer o direito à cidade é o de ocupar, usar e produzir cidades e a finalidade de exercer esse direito é de termos cidades justas, inclusivas e sustentáveis. A cidade é definida como um bem comum para uma adequada condição de vida contendo os seguintes componentes:
- a cidade livre de qualquer forma de discriminação;
- a cidade com cidadania inclusiva na qual reconhece todos os habitantes, permanentes ou transitórios, como cidadãos;
- a cidade com maior participação política;
- a cidade que cumpre as suas funções sociais que garante o acesso equitativo de todos ao uso, ocupação do território;
- a cidade com espaços públicos de qualidade;
- a cidade com igualdade de gênero;
- a cidade com diversidade cultural;
- a cidade com economias inclusivas;
- a cidade como um sistema de assentamento e ecossistema comum que respeite os vínculos e conexões entre o rural-urbano.
Por essa visão, a cidade como um bem comum é o bem que deve ter proteção legal e jurídica através do direito à cidade.
A visão da Nova Agenda Urbana
A Nova Agenda Urbana contempla em grande parte a visão defendida pela Plataforma Global. A visão contida no paragrafo 11 da Agenda considera como titulares os habitantes das presentes e futuras gerações em discriminação de qualquer ordem que pode ser interpretado como o reconhecimento dos habitantes temporários.
«Exercer o direito à cidade é ocupar, usar e produzir cidades e a finalidade de exercer esse direito é de termos cidades justas, inclusivas e sustentáveis».
Com relação à extensão territorial desse direito são incluídos todos os assentamentos humanos. Sobre a forma de exercer o direito considera o direito de habitar e produzir cidades e assentamentos humanos com a finalidade de serem justos, seguros, saudáveis, resilientes e sustentáveis.
No parágrafo 13 da Nova Agenda Urbana os componentes do Direito à Cidade estão contemplados tais como as cidades sem nenhuma forma de discriminação, com função social, com igualdade de gênero, com espaços públicos, com economia inclusiva, com proteção dos seus ecossistemas
Essa nova visão que traz um novo significado para os direitos humanos. Funções e formas de vida em nossas cidades e assentamentos humanos precisam ser consolidadas e consideradas como estratégicas pelos países e cidades no enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas, culturais e territoriais e dos impactos do aquecimento global e das mudanças climáticas.
Questão emergente para a consolidação da visão do Direito à Cidade
De todas as questões que precisam ser aprofundadas para a consolidação da visão do Direito à Cidade o ponto de partida deve ser a compreensão da cidade como um bem comum, como o pilar emergente do Direito à Cidade trazendo outras visões e pensamentos que possam contribuir nesse sentido como o pensamento do direito ao bom viver oriundo de pensamentos das civilizações indígenas latinas.
Direito à Cidade no Estatuto das Cidades. Brasil | Visão da Carta Mundial do Direito à Cidade | Visão da Plataforma Global do Direito á Cidade | Visão da Nova Agenda Urbana |
Artigo 2o
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
|
1. Todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, condições de saúde, renda, nacionalidade, etnia, condição migratória, orientação política, religiosa ou sexual, assim como preservar a memória e a identidade cultural em conformidade com os princípios e normas estabelecidos nessa Carta.
2. O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.
|
O direito à cidade é o direito de todos os habitantes da presente e futuras gerações, de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas e sustentáveis, definido como um bem essencial comum para uma adequada condição de vida.
A cidade como um bem comum contém os seguintes componentes: a) a cidade livre de qualquer forma de discriminação b) a cidade com cidadania inclusiva na qual reconhece todos os habitantes, permanentes ou transitórios, como cidadãos; c) a cidade com maior participação política; d) a cidade que cumpre as suas funções sociais que garante o acesso equitativo de todos ao uso, ocupação do território; e) a cidade com espaços públicos de qualidade; f) a cidade com igualdade de gênero; g) a cidade com diversidade cultural; h) a cidade com economias inclusivas; i) a cidade como um sistema de assentamento e ecossistema comum que respeite os vínculos e conexões entre o rural-urbano.
|
Ponto 11. Compartilhamos uma visão de cidade para todos, referente à fruição e ao uso igualitário de cidades e assentamentos humanos, almejando promover inclusão e assegurar que todos os habitantes, das gerações presentes e futuras, sem discriminações de qualquer ordem, possam habitar e produzir cidades e assentamentos humanos justos, seguros, saudáveis, acessíveis, resilientes e sustentáveis para fomentar prosperidade e qualidade de vida para todos. Salientamos os esforços envidados por alguns governos nacionais e locais no sentido de consagrar esta visão, referida como direito à cidade, em suas legislações, declarações políticas e diplomas.
Nova Agenda Urbana 12. Objetivamos realizar cidades e assentamentos humanos em que todas as pessoas possam desfrutar de direitos e oportunidades iguais, assim como de liberdades fundamentais, guiados pelos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, incluindo o pleno respeito ao direito internacional. A esse respeito, a Nova Agenda Urbana fundamenta-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tratados internacionais de direitos humanos. |
..
Para citar este artículo: Nelson Saule. A Cidade como um bem comum pilar emergente do Direito à Cidade. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales núm.2. A Coruña: Crítica Urbana, septiembre 2018. |