Por Josimar Priori |
CRÍTICA URBANA N.18 |
Durante o ano de 2015, eu realizei uma pesquisa etnográfica com pessoas que vivem nas ruas da cidade de Maringá-Paraná-Brasil[1] , o que me permitiu estudar o cotidiano da vida nas ruas e a suas intersecções com práticas religiosas, solidárias e estatais.
Por um lado, os que vivem nas ruas aparecem como objeto a partir do qual diferentes grupos sociais definem a si mesmos, a vida nas ruas e estabelecem maneiras de intervenção sobre ela. Por outro lado, as pessoas que vivem nas ruas ressignificam tais intervenções, produzindo maneiras específicas, resistentes e criativas de apropriação da cidade para produzirem sua vida social[2].
Panetones, cestas, doces, festas com direito a banho, corte de cabelo e uma troca de roupa nova, missas, cultos são algumas das atividades preparadas para pessoas que vivem nas ruas. Cheia de ambiguidades, há uma vontade de ajudar os que estão em situação de rua. Ela ocorre durante o ano todo e se intensifica no mês de dezembro. É feita por religiosos, por voluntários e também pelo Estado, via órgãos assistenciais. A fartura nas mesas e o apelo religioso do nascimento Jesus Cristo, que teria nascido numa situação de pobreza, estimulam o sentimento de “fazer algo pelo próximo”. Neste contexto, o morador de rua surge como “o pobre entre os pobres”, aquele que não tem o que comer, nem onde morar e figura como a contraparte para que valores cristãos, especialmente da caridade, possam se atualizar.
Tais sujeitos recepcionam estas ações e delas se servem como suporte para a manutenção da sua vida social. A descrição de um dia de trabalho de campo ajuda a compreender estas relações. Era véspera de natal e um grupo de pessoas que vivem nas ruas estava reunido na praça da Catedral de Maringá. Quando cheguei, por volta das 10h manhã, eles estavam planejando cozinhar o próprio almoço. Haviam ganhado uma cesta de alimentos do padre desta igreja e pretendiam obter itens complementares e panelas para cozer por meio do pedido. Contribuo comprando extrato de tomate e alguns condimentos. Em seguida, Caio e Nara saem para manguear – termo utilizado por eles para descrever o ato de pedir. Caio não gosta de cuidar de carro, mas é excelente mangueador, o que significa que domina as táticas de abordar um interlocutor e convencê-lo a doar algo, seja dinheiro, seja algum produto ou objeto que precise. A prática do mangueio contesta e recusa a mendicância, vista como acusatória e desrespeitosa. O ato de pedir, na rua, vira mangueio e a identificação como mendigo é recusada e substituída por morador de rua ou trecheiro.
Gilson, por sua vez, não gosta de manguear e consegue dinheiro cuidando de carro. Esta atividade também exige desenvoltura, modos definidos de abordagem, fineza no trato com o motorista e permanência no local até o retorno do proprietário. A primeira, como dito, rompe com a imagem da mendicância. A segunda recusa a categorização usual de flanelinha e reivindica o status de trabalho. Ambas implicam num denso conhecimento e apropriação dos espaços urbanos.
Neste dia também encontrei Beto. Acompanhando-o, observei parte das relações de pessoas que vivem nas ruas com algumas práticas estatais, caracterizadas nessa situação pelas dificuldades enfrentadas no atendimento médico. Este interlocutor tinha acabado de chegar de um período de internamento na emergência psiquiátrica municipal. Por volta de 50 anos, se confundia com as datas, mas estava há pelo menos cinco anos vivendo na rua. Cuidava de carros no entorno da catedral todos os dias, com exceção de sábado, o único dia que folgava. Reconhecia nessa prática um legítimo trabalho. Esteve internado depois de uma recaída no consumo de álcool, o qual não podia beber em decorrência de problemas de saúde. Beto estava com uma receita em mãos e solicitou minha ajuda para conseguir os medicamentos. Acompanhei-o num percurso institucional desgastante para a obtenção dos medicamentos.
Saímos um pouco antes do meio dia e fomos à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) retirá-los. Ao chegar ao local, fomos informados que não era naquela unidade que ficava a farmácia. Estávamos na zona sul e deveríamos ir à UPA zona norte. Ainda debilitado, tal itinerário de cerca de 9 km seria praticamente impossível para Beto caso não contasse com uma ajuda para a locomoção. Atravessamos a cidade e ao chegarmos neste local recebemos duas notícias: “uma boa e uma ruim”, assegurou a atendente. Tinham os medicamentos, mas não autorização para fornecê-lo. O farmacêutico responsável estava de folga por ser véspera de natal. Era quinta-feira e só voltaria a atender na segunda. Beto precisaria esperar até lá para receber o que precisava. A atendente sugeriu que falássemos com a enfermeira-chefe. A presença de Beto faz o serviço se movimentar: auxiliares de enfermagem, recepcionistas, enfermeiras e médicos são acionados. Depois de muita conversa e longo de tempo de espera, finalmente conseguimos os remédios e voltamos para a praça.
Quando chegamos, já era mais de três da tarde. O grupo descansava embaixo de uma árvore, deitados em lençóis sobre a grama. Era um fraterno momento de tranquilidade. Perguntei sobre o alimento. Havia acabado, mas Luciano tinha guardado a parte dele para comer depois. Como eu não tinha comido, ele fez questão que eu comesse a parte dele. Ele demonstrava prazer em partilhar seu alimento comigo e certeza de que não ficaria sem comer.
As evidências, de fato, não demonstravam escassez de alimentos. A ajuda recebida era considerável em todos os períodos e especialmente no final de ano. Além das cestas, naquele dia mesmo, depois do almoço cozido na rua por eles próprios, receberam ainda marmitex[3]. Haveria ainda uma ceia de natal com promessa de churrasco, que seria realizada por um grupo de voluntários. Importante salientar, porém, que, apesar de muito frequente, o fornecimento de alimentação não é organizado e sistemático, mas construído com base na “boa vontade” de indivíduos ou grupos que desejam oferecer alguma ajuda a moradores de rua, tampouco as pessoas que vivem nas ruas dispõem de participação na definição dos cardápios, horários e locais de entrega. O máximo que podem fazer é rejeitar um ou outro alimento que não gostam, guardá-los para mais tarde, repassar para alguém ou recusar.
Não existem cronograma e horários fixos. De todo modo, o saber aprendido nas ruas lhes informa, por exemplo, que na terça à noite um pastor entrega alimentos na Praça Raposo Tavares, que na quarta um grupo passa distribuindo alimentos no começo da noite, na segunda também há um grupo, mas um pouco mais tarde. Sextas à noite jovens de uma igreja entregam pães com presunto, muçarela e refrigerante. Aos domingos de manhã era a vez de receberem um café de manhã. O almoço poderia ser no albergue, no restaurante popular ou ganhado num restaurante comercial. Cada um destes meios de alimentação, porém, poderia, por uma razão ou outra, falhar, o que não lhes dava certeza com antecedência se teriam aquela refeição. Ainda assim, havia confiança de que a alimentação seria garantida. As alternativas eram várias e no limite poderiam comprar um lanche com o dinheiro do cuidado de carro ou de mangueio.
A data era especial. Foi uma espécie de confraternização de natal. Cozinhar a própria comida agregava simbologia ao momento. O bom ambiente não os eximia, porém, de conviver com a incômoda presença do Estado na sua versão policial. Os órgãos assistenciais só atendem em horário comercial, mas a polícia trabalha 24 horas por dia. Mesmo neste momento de lazer e ritualização as pessoas que vivem nas ruas continuavam sendo vigiadas, o que também ritualizava a constante, intimidadora e não raro violenta presença policial em seu cotidiano. O fato de ser véspera de natal não seria motivo suficiente para não serem abordados e, se houvesse necessidade, poderiam ser expulsos dos lugares mais centrais e, portanto, mais visíveis da cidade.
Este relato reúne alguns elementos do cotidiano da vida nas ruas. Aparecem práticas que são criadas nas ruas e mediadas – dificultadas no caso da obtenção da medicação – pelas práticas de outros grupos. Vemos maneiras como as pessoas que vivem nas ruas se organizam, como obtêm algum dinheiro por meio do que chamam de mangueio e do cuidado de carro, momentos de sociabilidade e de lazer. Vemos também modos pelos quais outros grupos sociais intervêm sobre as ruas, especialmente por meio de doações. A presença policial, por sua vez, não os deixava esquecer que estavam sendo observados o tempo todo.
Havia efetivamente inúmeros agentes sociais interessados em atuar com a questão, o que torna visível como vida nas ruas movimenta uma série de atores sociais. Ela se apresenta então como uma questão não apenas circunscrita àqueles que a vivenciam, mas que impulsiona a ação de inúmeros grupos sociais. As práticas de tais grupos redundam sobre a vida das pessoas que vivem nas ruas de maneira complexa: por um lado, torna possível a obtenção de alimentação, de roupas, de contato social e religioso, mas por outro, submetem as pessoas que vivem nas ruas a seus valores morais, exercendo uma espécie de controle sobre eles.
De fato, boa parte do que se oferece para lidar com a questão da vida nas ruas se localiza no campo da religiosidade e da ajuda voluntária, o que obriga as pessoas que vivem nas ruas se ajustarem a tais códigos para se beneficiarem do que lhes oferecem. Importante também destacar que esta ajuda se restringe a aspectos como doação de alimentos e roupas, mas raramente evolui para uma discussão que problematize, por exemplo, a violência sofrida nas ruas, a pobreza, o desemprego, a falta de habitação e a criação de condições de efetiva emancipação destas pessoas.
As descrições e análises aqui tecidas não abarcam todos os aspectos da vida nas ruas, mas buscam gerar reflexões sobre alguns aspectos dos conflitos contemporâneos. Desta maneira, é possível observar tanto as formas criativas com que pessoas que vivem nas ruas estabelecem formas de resistência e de vida social, quanto como se processam algumas dos modos contemporâneos de regulação e controle da vida nas ruas. Para os religiosos, os que vivem nas ruas aparecem como pobres a serem socorridos e pecadores a serem convertidos. Assim, a ajuda oferecida é tanto uma prática de caridade, quanto um mecanismo para fazer pregações religiosas e expandir o cristianismo, notadamente o neopentecostal.
Os voluntários se articulam a partir do sentimento estarem fazendo um bem para os que julgam precisar e a partir daí estabeleçam uma identidade em torno de uma organização coletiva. O Estado, por sua vez, realiza o gerenciamento da vida das ruas em duas frentes. Por um lado, por meio dos órgãos socioassistenciais que ajudam os que vivem nas ruas em nome da efetivação de direitos e da construção de novos estilos de vida. Por outro lado, utiliza-se das forças policiais para vigiar, abordar, reprimir e expulsar os que vivem na rua de lugares indesejáveis. Observa-se, assim, uma imbricação de práticas que perpassam diferentes esferas sociais, as quais integram um misto de assistência, repressão, produção e reprodução da vida nas ruas. Tais ações, de fato, promovem uma forma de regulação da pobreza que evita que o conflito social atinja um nível que não seja possível controlar, mas raramente geram condições de ruptura com a vida nas ruas.
Enfrentar o problema de maneira a criar efetivas condições de saída das ruas não é fácil, mas entendo que um primeiro passo seria tomar as pessoas que ali vivem não como receptáculos ou objeto de ajudas, mas como sujeitos protagonistas para a construção de novos projetos de vida. De fato, é fundamental que a criatividade, os saberes, as formas de resistência e as experiências acumuladas entre as pessoas que vivem nas ruas estejam no centro do debate não apenas para a produção de políticas eficazes para enfrentar esta situação, mas também para criar formas inovadoras e menos opressivas de organização social.
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[1] Os nomes dos sujeitos pesquisados foram alterados e palavras usadas em seu cotidiano foram grafadas em itálico.
[2] A última década consolidou uma nova perspectiva analítica que culminou com a publicação do livro Novas faces da vida nas ruas, organizado por Taniele Rui, Mariana Martinez e Gabriel Feltran (São Carlos/SP: EDUFSCar, 2016). Esta abordagem busca se distanciar de análises que focam em ausências e que salientam perdas, faltas e exclusão. Assim, o foco consiste em descrever o que pessoas que vivem nas ruas e outros grupos sociais marginalizados produzem, trazendo para o centro das narrativas os seus modos de vida e atuação no mundo. Tal procedimento alça a análise a um novo nível, que faz de tais sujeitos não propriamente objetos de estudo, mas um ponto de partida para a análise, pois se reconhece que na rua também se produz conhecimento e que ela – a vida nas ruas – oferece parâmetros para a constituição de uma série de práticas sociais como Estado, modos de governo, identidades, narrativas, saberes acadêmicos, religião, voluntariado, arquiteturas, cidade etc.
[3] Termo utilizado na região de Maringá para se referir a marmitas servidas prontas e embaladas para transporte. Em outras regiões, utiliza-se o termo quentinha com significado análogo.
Nota sobre o autor
Josimar Priori Josimar Priori. Professor do Instituto Federal do Paraná. Doutor em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. Autor de A luta faz a lei: reflexões sobre política, movimentos sociais e associações de moradores em Sarandi-PR.
Para citar este artículo:
Josimar Priori. A vida nas ruas em maringá. Um relato etnográfico. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 18 Vivir en la calle. A Coruña: Crítica Urbana, mayo 2021.