Por Isabel Cristina Rodrigues, Fabíola Cordovil |
CRÍTICA URBANA N.18 |
Até o começo dos anos 2000, a presença indígena nas cidades do Paraná não era muito percebida pelos não indígenas, pois não era nem intensa e nem frequente. Essa realidade começou a mudar e a vinda para as cidades se intensificou a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF), que garantiu aos povos indígenas o direito de cidadania e outros direitos políticos e civis, conforme prescritos nos artigos 210, 231 e 232.
Com isso, os registros de circulação e presença de indígenas nas cidades intensificou-se, pondo fim ao estado jurídico da tutela, sendo esse resultado fruto do intenso processo de organização indígena, de luta e de resistência empreendido por esses povos no período pós contato com os povos europeus que ocuparam o Brasil, a partir do século XVI e seguintes.
A presença indígena no Paraná e nas cidades
Os dados censitários da última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, (IBGE), de 2010 comprovam que existem 305 etnias no Brasil, somando em torno de 817 mil pessoas, falantes de 274 línguas, sendo que 60 % desses povos vivem na zona rural e 40%, na zona urbana. No estado do Paraná, os dados populacionais são da ordem de 25.915 habitantes, sendo 15.552 residentes em 39 Terras Indígenas (T.Is.) e os demais habitando os centros urbanos. Esses indígenas habitantes no estado são pertencentes a 3 etnias: Kaingang, Guarani e Xetá, algumas famílias de Xokleng e algumas de Fulniô. A etnia Kaingang registra em torno de 12 mil pessoas, sendo maior número de habitantes e a terceira etnia em número populacional no Brasil[1].
O processo histórico de expropriação e do “território vazio” do Norte do Paraná
Quando se trata de território, é preciso deixar claro que as terras destinadas aos indígenas no Paraná sofreram um processo histórico de expropriação que as submeteram à lógica capitalista da expansão da fronteira agrícola, principalmente com o avanço da cafeicultura nos anos 1920 a partir do estado vizinho, São Paulo. A incorporação das áreas de plantio foi acompanhada pela extensão do canal rodoferroviário e fundação de cidades. A restrição da mobilidade dos povos indígenas, especialmente dos Kaingangs, se constituiu numa afronta aos seus costumes e modos de vida.
Nas novas áreas de exploração capitalista, promovida por empresas privadas, Monbeig[2] relata que os grandes golpes de propaganda evidenciaram a ingenuidade e o ardor dos pioneiros, que eram seduzidos com esperanças de lucros desmesurados. As cidades são preestabelecidas e, juntamente com o plano urbano, as vantagens são enaltecidas para atrair compradores. Enquanto isso, a floresta desaparecia rapidamente e a diversidade da vegetação nativa era exibida em fotografias e em relatos diversos. A supremacia do homem sobre a paisagem “selvagem” a ser civilizada era glorificada. Os índios não são considerados humanos nessas narrativas, segundo Tomazi[3], que demonstra a falácia existente no processo de (re)ocupação da região norte do Paraná. O autor discute o discurso dominante que trata o território como “vazio demográfico e mata virgem”, que desqualifica e omite a presença indígena na região. Mostra que só se considera a efetivação da ocupação do território com a chegada da “cultura ocidental cristã”. Inúmeras cidades foram construídas atreladas à conquista desse território tido como sem ocupação humana anterior, em áreas de mata atlântica nas quais os indígenas se constituíam, de fato, em habitantes principais.
Algumas das “novas cidades” do imenso território tiveram especialmente a tarefa de se destacar como polos regionais e polos modernizadores ao longo de um eixo rodoferroviário estabelecido para atravessar a vasta área em direção ao oeste. Havia diferenças em termos de escala, localização, de função e, também, de desenho urbano dessas cidades nascidas de um sonho moderno. A produção de sua carga mítica constitui-se em fator importante para atração de pessoas e, também, de expulsão daqueles que não integravam a demanda solvável submetida ao modo de produção que assaltou o território.
Dentre os polos regionais, Maringá constituiu-se como terra de promissão em um novo território que foi considerado destituído de uma história preestabelecida e de habitantes originais. A política colonizadora realizada por uma empresa privada impôs uma nova realidade, a partir de um processo civilizatório que modificou sobremaneira a paisagem original e introduziu novos problemas e novos programas. No início dos anos 1940, vislumbrava-se em Maringá o lugar onde se poderia implantar um verdadeiro projeto de modernização. Nesse contexto, o projeto urbanístico assumia importância fundamental.
Onde estão os Kaingangs?
Atualmente existem no Paraná 37 Territórios Indígenas (T.I.). e vários acampamentos, tanto na zona rural quanto urbana, aguardando regularização jurídica, das quais os Kaingang residem em cerca de 17 delas. O número de habitantes por T.I. é bastante variado, sendo que a menor tem em torno de 150 e a maior em torno de 5 mil pessoas. Nas T.Is. maiores existem até 7 aldeias, nas quais residem mais de uma etnia.
Geralmente os habitantes residem próximos aos postos de serviços e espaços de convivência social, comunitária e religiosa, constituídos por: unidade básica de saúde, escolas, igrejas, campo de futebol e quadra esportiva. As formas atuais de organização refletem as configurações sociais, políticas e cosmológicas dos diferentes períodos históricos vividos por eles, a partir do contato com os povos não indígenas, nas quais as unidades político-territoriais autônomas antes existentes – emãs e toldos – foram, a partir da década de 1910, com a criação e implantação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), vêm sofrendo mudanças drásticas nas suas formas de organização social, política, territorial que, além de outras mudanças, promoveu a concentração das moradias próximas aos postos de serviço e sob o olhar e controle dos chefes de postos, que eram servidores do SPI.
A partir dessas mudanças na vida social interna e com o loteamento privado dos territórios antes pertencentes a esse e a outros grupos indígenas no estado, suas liberdades de mobilidade foram sendo cada vez mais reduzidas e suas saídas controladas pelo SPI e, posteriormente, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão tutelar que substituiu o anterior, gerando a perda da autonomia e uma situação de dependência político-administrativa, retomada com vigor a partir da promulgação da CF de 1988 que pôs fim à tutela e garantiu aos povos indígenas no Brasil os direitos de cidadania, de gestão de seus territórios, de seus conhecimentos próprios, de educação e saúde.
O território continua sendo a base material sobre a qual se assenta a comunidade kaingang. O povo Kaingang, com seus costumes e seus modos próprios de vida, atravessou parte do século XIX, o século XX e as duas primeiras décadas do século XXI sofrendo ataques, expropriações, mortes, e enfrentou as adversidades de maneira criativa. Os estudos históricos[4] e antropológicos[5] mostram que o violento processo de contato com os colonizadores fóg (brancos) não usurpou deles suas características de pertencimento ao grupo Jê. Os estudos etnográficos reafirmam as classificações antropológicas de pertencimento étnico, entre elas dualismo, patrilinearidade, matrilocalidade e faccionalismo político, presentes na vida cotidiana e constantemente atualizados). É inegável que o violento processo de contato provocou mudanças e rupturas, mas também permanências, que resultaram na apropriação, ressignificação, (re)invenção e atualização de princípios ligados à sua tradicionalidade[6].
Assim as saídas das aldeias para diferentes regiões do estado foram aos poucas retomadas e intensificadas desde o final da década de 1980, e as famílias Kaingang que vêm para Maringá e municípios vizinhos são oriundas das regiões dos vales dos rios Ivaí e Tibagi.
Os direitos à cidade e à vida
A Constituição de 1988 marcou a retomada do estado democrático de direito que, desde o golpe militar de 1964, havia sido abolido. Além da inclusão dos direitos políticos e civis dos indígenas, prescritos nos artigos 210, 231 e 232, a inclusão do capítulo sobre Política Urbana foi fruto de lutas históricas pela reforma urbana no país e estabeleceu que a função da cidade e da propriedade deveria ocorrer a partir do plano diretor municipal. A partir disso, em 2001, outro marco jurídico, o Estatuto da Cidade, visou estabelecer mais fortemente as diretrizes para a construção de cidades mais justas e democráticas, contemplando mais significativamente as plataformas do movimento nacional pela reforma urbana, entre elas o Direito à Cidade.
Todavia, apesar das lutas e das conquistas pelo direito à cidadania e aos processos próprios de suas culturas, línguas, educação intercultural e bilíngue, os povos indígenas no Brasil enfrentam dificuldades, sobretudo as relacionadas às questões sócio econômicas e educacionais. No estado do Paraná a realidade desses povos é impactante no tocante aos acessos aos bens materiais e de consumo, bem como à saúde e à educação.
Em Maringá, é comum observar famílias Kaingang presentes nas ruas urbanas, muitas vezes vendendo artesanatos, feitos por eles próprios, nos semáforos, nas feiras livres ou permanecendo e convivendo nas vias públicas em grupos. No entanto, essa convivência mostra-se problemática à medida que as pessoas das cidades nutrem um preconceito oriundo, entre outros fatores, do desconhecimento da história, das culturas e da diversidade dos povos indígenas existentes hoje no Brasil.
É importante entender que a mobilidade dos povos indígenas e dos Kaingang faz parte de sua história e cultura, e que foram em seus percursos que se criaram as cidades modernas soterrando seus habitats iniciais. Portanto, viver e estar temporariamente na cidade faz parte de sua vida, de sua forma de educar as crianças, ensiná-las a serem adultas e do seu direito a estar na cidade.
Reconhecer a diversidade cultural e o direito à cidade dos Kaingang é reconhecer a resistência dos povos indígenas e o enfrentamento à sua destruição pelo modo de vida capitalista.
______________________
[1] Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).
[2] MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1984.
[3] TOMAZI, Nelson. Construções e silêncios sobre a (re)ocupação da região norte do estado do Paraná. In: DIAS, Reginaldo B.; GONÇALVES, José H. R. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá: EDUEM, 1999.
[4] MOTA, Lúcio Tadeu; DA SILVA NOVAK, Éder. Os Kaingang do vale do rio Ivaí, PR: história e relações interculturais. Universidade Estadual de Maringá, 2008.
[5] VEIGA, Juracilda et al. Organização social e cosmovisção Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Je meridional. 1994.
RODRIGUES, Isabel C. Venh Jykré Sy – Memória, tradição e costume entre os Kaingang da T.I.Faxinal, Cândido de Abreu – Pr. PUC/SP, 2012. Tese de doutorado.
[6] RODRIGUES, 2012.
Nota sobre as autoras
Isabel Cristina Rodrigues, historiadora, mestre em Educação e doutora em Ciências Sociais e Antropologia pela PUC/SP. Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do CNPq Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações – Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história da UEM (PIESP/LAEE). E-mail: icrodrigues@uem.br
Fabíola Castelo de Souza Cordovil. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP e pós-doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atua como docente pesquisadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Paraná, Brasil, na área de Urbanismo. Foi chefe de departamento e coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo (2010-2016), e representante da UEM no Conselho Municipal de Planejamento Urbano de Maringá, de 2011 a 2015. Faz parte da equipe de redatores da revista Crítica Urbana. E-mail: fcscordovil@uem.br
Para citar este artículo:
Isabel Cristina Rodrigues, Fabíola Cordovil. Povos indígenas, direito às cidades e justiça social. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 18 Vivir en la calle. A Coruña: Crítica Urbana, mayo 2021.