Por Tarcyla Fidalgo |
CRÍTICA URBANA N.21 |
Nas últimas décadas, o neoliberalismo e a dominância financeira que passaram a caracterizar o capitalismo em nível mundial tiveram diversos rebatimentos no âmbito urbano.
Pode-se falar em um circuito entre rentismo, financeirização e práticas de neoextrativismo, no qual as cidades passam a ser vistas como fonte privilegiada de relações rentistas –muitas delas instituídas por práticas neoextrativistas-, saída para crises de sobreacumulação e nova fronteira de acumulação, especialmente financeira.
O rentismo se caracteriza pela prática de obtenção de renda a partir do estabelecimento de relações de propriedade, se combinando com práticas neoextrativistas que podem ser definidas como a apropriação privada de bens antes comunais ou naturais. Ambos os processos se relacionam diretamente com a financeirização que, apesar das controvérsias conceituais, pode ser definida como o protagonismo da acumulação financeira –lastreada em formas de capital fictício– sobre a acumulação produtiva.

Pie de foto Foto: ComCat – Comunidades Catalisadoras.
No âmbito urbano, esse circuito pode ser exemplificado a partir dos processos de transformação pelos quais vem passando a terra urbana no Brasil. Com um cenário histórico de constituição de relações sociais fora do padrão capitalista da propriedade privada, o Brasil tem empenhado crescentes esforços para a homogeneização do seu regime fundiário exatamente sob o paradigma da propriedade privada individual. Esse processo pode ser visto como uma prática neoextrativista, especialmente em relação a terras de comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que permite o incremento de práticas rentistas tendo a terra como base e fixa as bases para um processo mais amplo de financeirização a partir de títulos lastreados na dimensão fundiária. Processos semelhantes, nos quais podemos identificar a presença do circuito acima destacados, podem ser observados em diversos países do sul global.
Nesse cenário, as cidades passam a se caracterizar pela conversão de seus elementos e espaços em formatos os mais funcionais possíveis para as dinâmicas rentistas–financeiras-neoextrativistas. Assim, as cidades nas últimas décadas se tornaram palco de práticas de despossessão, conversão de bens e práticas comuns em mercadoria por meio da propriedade privada e de atuação de agentes financeiros como fundos de investimento.
Para além das práticas e atividades urbanas adstritas ao circuito formado pelo rentismo, financeirização e neoextrativismo, a vida urbana passou a ser dominada por um ethos neoliberal individualista, meritocrático e empreendedor, que reduz o nível de solidariedade social e dificulta a expansão de práticas de resistências.
Todo esse cenário tem tido graves consequências nas cidades ao redor do mundo, ainda que em graus diversos: assistimos a um aumento generalizado da desigualdade socioespacial, do isolamento -especialmente das classes mais altas- em enclaves condominiais e de práticas sociais violentas que se estabelecem a partir da alteridade.
Entretanto, se perpetuam –e em alguns lugares até se expandem– práticas e espaços urbanos comuns, sejam relacionados a práticas e territórios ancestrais que resistem em meio à crescente individualização e desencantamento do mundo, sejam relacionados a coletivos e indivíduos que, atentos aos movimentos em andamento nos espaços urbanos, decidem romper com essa lógica individualista, rentista e empreendedora que vem dominando nossas cidades.
Estes “comuns urbanos”, em que pesem as discordâncias conceituais presentes na literatura, devem ser compreendidos de forma ampla como práticas coletivas, com base territorial nas cidades, nas quais não há relações de apropriação privada do resultado do trabalho coletivo.
No momento atual de alto grau disruptivo a partir da pandemia mundial da COVID-19 e suas consequências econômicas e políticas em todo o mundo, a busca pelos comuns urbanos enquanto práticas emancipatórias e afetivas parece ganhar ainda mais importância. Apesar da necessidade do isolamento social, nunca tivemos tanta vontade de estar juntos e construir coletivamente alternativas para um modelo de cidade e de sociedade que parece definitivamente fracassado.
A este impulso coletivo se chocam os interesses de agentes capitalistas poderosos que lucram com o modelo de cidade neoliberal baseada no circuito neoextrativismo –rentismo– financeirização. Assim, parece que estamos pouco a pouco caminhando no sentido da constituição de nova e fundamental arena de disputas no âmbito urbano. Nesta arena, de um lado temos o comum, que emerge como uma necessidade e desejo coletivo, e do outro temos o modelo de cidade neoliberal que, mesmo fracassando na manutenção de condições de vida adequadas para a maioria, insiste em se manter vivo em atenção ao interesse de poucos.
Um exemplo deste processo está nas disputas envolvendo a água nas cidades de Caxambu, no Brasil, e Cochabamba, na Bolívia[1]. Em ambos os casos, a água é a base de relações comuns ancestrais, com forte relação com a memória da população dessas cidades. Recentemente, no entanto, passaram por disputas legais envolvendo a pretensão de declaração deste bem como propriedade privada. Ou seja, trata-se da disputa entre práticas comuns e a propriedade privada, envolvendo um bem escasso e de valor econômico crescente como a água.
A disputa está colocada em nossas cidades e o caminho sustentável para a vida humana parece passar pelo avanço das práticas comuns rumo a um horizonte pós-capitalista, no qual as cidades se configurem como espaços de troca e desenvolvimento da forma mais igualitária e justa possível para todos os seus habitantes.
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[1] Para saber mais: https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/em-caxambu-mg-a-necessidade-de-preservacao-de-um-patrimonio-imaterial/
Nota sobre la autora
Tarcyla Fidalgo é advogada e pesquisadora. Suas linhas de investigação são a economia política urbana, os comuns urbanos e o direito urbanístico. É pesquisadora do Observatório das Metrópoles no Rio de Janeiro.
Para citar este artículo:
Tarcyla Fidalgo. As cidades no limite da dominância financeira: possibilidades para um urbano mais comum. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 21 Los límites del crecimiento. A Coruña: Crítica Urbana, noviembre 2021.