Por Anai Adario Hungaro; Ana Lúcia Rodrigues; Magda Lúcia Félix De Oliveira |
CRÍTICA URBANA N.18 |
O Brasil não possui dados oficiais sobre a quantificação da população em situação de rua, pois o censo demográfico decenal e as contagens populacionais periódicas coletam os dados a partir da base familiar e não incluem a averiguação da população não domiciliada, e o grupo permanece invisível ao Estado1.
A população em situação de rua é um grupo heterogêneo, caracterizado por pobreza, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia convencional regular, bem como por utilizar os logradouros públicos como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, ou unidades de acolhimento temporário para pernoite ou moradia provisória[2].
A ausência de dados oficiais sobre pessoas em situação de rua justifica a realização de pesquisas censitárias municipalizadas com vistas à implementação de políticas públicas voltadas para diminuir sua invisibilidade social.
Em 2018, o município de Maringá, localizado no estado do Paraná, Brasil possuía uma população estimada em 417.010 habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,808 (Ipardes, 2018). Para analisar características pessoais e fatores associados à situação de rua em pessoas que vivem nas ruas de um município do Paraná – Brasil, realizamos um estudo do tipo censitário, nos anos de 2015 a 2018, com uso de diário intensivo[3].
Quem são as pessoas em situação de rua em Maringá, Paraná, Brasil. Recenseamento de 4 anos
Os participantes eram pessoas que viviam nas ruas ou estavam em abrigos ou instituições de acolhimento em Maringá-PR, e idade superior a 18 anos no período dos censos anuais. Foram coletadas informações diretamente do grupo recenseado, por meio de um roteiro estruturado, com questões do perfil sociodemográfico, condições de vida nas ruas e consumo de drogas — tipo, idade média de experimentação e uso atual.
O trabalho de campo foi realizado em uma abordagem intensiva noturna (19h – 06h), em cenas urbanas de moradia das pessoas em situação de rua, e em sete dias posteriores, nos diferentes ambientes de acolhimento municipais — entidades sociais e organizações não governamentais, unidades de saúde e comunidades terapêuticas[4]. Os locais de maior circulação dessas pessoas foram estabelecidos em 12 a 14 trajetos (ruas, praças) e 10 a 12 instituições de acolhimento e/ou abrigo, anualmente.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá -PR. Os participantes assinaram o termo de consentimento para a entrevista e captura de imagem pessoal, e, na impossibilidade da assinatura (analfabetos ou sem condições físicas de assinar), o consentimento foi realizado pela impressão dactiloscópica.
Foram entrevistadas 701 pessoas: 160 (22,8%), em 2015; 117 (16,7%), em 2016; 177 (25,2%), em 2017; e 247 (35,2%) em 2018. Quatrocentos e dezoito (59,6%) eram desabrigados; 178 (25,4%) abrigados em instituições de proteção social; e 105 (15%) informaram domicílio familiar, porém optavam pela vida nas ruas. Relataram dormir principalmente nas calçadas ou em casas abandonadas.
O tempo médio nas ruas foi de 5,39 anos (DP ± 7,48), com tempo mínimo inferior a um ano e tempo máximo de 49 anos. Os principais motivos de mobilidade para Maringá foram desemprego (29,7%), desacordo familiar na cidade de origem (16,3%) ou “facilidade de moradia” (9,0%).
O aumento gradativo de pessoas entrevistadas nos anos em estudo pode indicar o aumento efetivo de pessoas em situação de rua vivendo no município, pois a mobilidade intermunicipal se deu pela busca de emprego e pelas facilidades de viver na cidade em uma década de crise econômica e aumento de desigualdade social[5]. Outro aspecto é o tempo de permanência nas ruas, em média 5,39 anos, o que pode indicar o crescimento da população de rua no município.
O processo de rualização refere-se a uma condição que se vai conformando a partir de múltiplos condicionantes, razão pela qual a intervenção junto àqueles que estão ainda há pouco tempo em situação de rua parece ser fundamental para que se logre maior efetividade em termos de políticas públicas[6].
A idade era em média de 37,7 anos (DP ± 11,43), e as idades mínima e máxima, 18 e 77 anos. A distribuição por faixas etárias mostrou que 59,6% estavam na faixa etária de 25 a 44 anos, e 0,9% idosos. Eram 635 homens (90,7%), com raça/cor autorreferida por 366 como parda (52,2%) e 95 pretas (13,6%).
O perfil das pessoas em situação de rua de Maringá acompanha a tendência de estudos nacionais e internacionais[7].O censo decenal contabilizou a população brasileira em 53% de negros (inclui pardos) e 46% de brancos[8].Levando em conta o mesmo método, a representação de pretos em nosso estudo é de 65,8%, superior à representação na população brasileira.
Os motivos para viverem nas ruas foram o uso de drogas (n=331; 47,2%), desentendimentos familiares (n=273; 38,9%) e desemprego (n=179; 25,5%). Em relação ao uso de drogas, 257 haviam sido internados em comunidades terapêuticas e/ou hospitais psiquiátricos.
Para a ida à situação de rua, estão presentes múltiplos fatores; dificilmente um único fator ocasionará a ida para as ruas[9]. Desentendimentos familiares e uso de drogas foram referidos como motivos para a ida às ruas, porém se questiona se a permanência nas ruas pode estar relacionada a esses achados. É preciso ter cautela ao afirmar que as pessoas estão em situação de rua devido ao uso de drogas, pois é difícil mensurar se a utilização de drogas se dá como “causa” para a situação de rua ou “consequência”[10].
No entanto, o consumo de tabaco e álcool foram de maior prevalência de uso na vida, representando 84,6% e 84,7% respectivamente e idade média de experimentação foi abaixo dos 14 anos, e o uso atual das duas drogas estava próximo de 70,0%. As drogas de abuso ilícitas de maior prevalência de uso na vida foram maconha (67,9%); crack (63,9%), cocaína (44,1%) e inalantes, (40,1%), com idades médias de experimentação situadas entre 14 e 15 anos, porém uso atual era, em ordem decrescente, de crack, maconha, cocaína inalada e outros inalantes. Das drogas de baladas ou recreacionais, foi indicado o uso na vida de anfetamina (25,4%), medicamentos sedativos (13,5%) e opioides/opiláceos (3,2%), com médias de idade de experimentação entre 15 e 19 anos.
O abuso de drogas, em especial a do álcool já é tematizado em estudos sobre populações em situação de rua, em nível internacional e nacional[11]. Autores apontam a necessidade de integração entre as políticas sociais para enfrentamento às situações de rualização, destacando a importância de que seja garantido a esse segmento o acesso ao tratamento na área da saúde mental de modo articulado a outras políticas.
Apesar do álcool e do tabaco serem estatisticamente as drogas mais consumidas desse grupo populacional, o uso de crack representa um sério problema em virtude das consequências individuais, coadjuvando o cenário da rua e um desafio para as políticas públicas de saúde, principalmente para as políticas primárias de atenção à saúde, sobretudo por se observar crescente aumento na prevalência de seu uso[12].
Considerações finais
A metodologia do censo intensivo pode não atingir todos as pessoas de rua, por ser uma população flutuante — temporariamente abrigada ou deslocada temporariamente para outros municípios -, mas não se pode afirmar que em um período maior de coleta de dados seria mais eficaz, pela possibilidade de quantificá-los duplamente, ou, também, pela situação de população flutuante.
Aproximar-se dessa população e conhecer seus modos de vida possibilitou identificar aspectos peculiares, tanto para propor alternativas que possam contribuir para sua visibilidade quanto subsidiar a elaboração e implementação de políticas públicas, e contribuir, ainda, para uma visão menos estigmatizada e preconceituosa da pessoa em situação de rua.
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[1] Figueiredo EHL; Guerra DLR. [From the homeless: The criminalization of the invisible.] RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru. [Internet]2016 [cited2019 Mar14]; 50(66):160-76. Available from: http://ojs.ite.edu.br/index.php/ripe/article/view/265/292 Portuguese
[2] Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Pesquisa nacional à população de rua. Brasília: MDS, 2008.
[3] Feltran GS.[Intensive diary: the question of the “adolescent in conflict with the law”, in context].Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade [Internet]. 2011 [cited2019 Mar14];1: 01-44. Available from: http://revista.pgsskroton.com.br/index.php/adolescencia/article/view/261 Portuguese.
[4] Ibidem
[5] Ver nota 1
[6] Ibidem
[7] Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Pesquisa nacional à população de rua. Brasília: MDS, 2008. Tiengo VM. The Phenomenon Population in Street Situation as a Fruit of Capitalism. Textos & Contextos, 2018; 17(1):138-50. [cited 2019-03-11], Available from: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/viewFile/29403/17158 e-ISSN 1677-9509. Doi. 10.15448/1677-9509.2018.1.29403
[8] Cfme Brasil, 2008.
[9] Cfme. Tiengo, 2018.
[10] Ibidem
[11] Cfme. Brasil, 2008.
[12] Prates JC, Prates FC, Machado S. Homeless population: the precarious exclusion and inclusion processes experieced by this segment. Temporalis, Brasilia (DF), 2011[cited 2019 Mar 11], 22:191-215. Available from: file:///C:/Users/User/Downloads/Dialnet-PopulacoesEmSituacaoDeRua-4054460.pdf
Nota sobre as autoras
Anai Adario Hungaro. Enfermeira. Doutora pela Universidade Estadual de Maringá. Plantonista no Centro de Controle de Intoxicações – Hospital Universitário. Maringá, Paraná, Brasil. Trabalhou com Populações Vulneráveis durante a Pós-Graduação.
Ana Lúcia Rodrigues. Cientista Social. Doutora. Docente na Universidade Estadual de Maringá, Coordenadora do Observatório das Metrópoles. Maringá, Paraná, Brasil.
Magda Lúcia Félix de Oliveira. Enfermeira. Doutora em Saúde Pública. Docente na Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do Centro de Controle de Intoxicações – Hospital Universitário. Maringá, Paraná, Brasil.
Para citar este artículo:
Anai Adario Hungaro; Ana Lúcia Rodrigues; Magda Lúcia Félix De Oliveira. Quem são as pessoas em situação de rua. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 18 Vivir en la calle. A Coruña: Crítica Urbana, mayo 2021.