Por Ana Lucia Rodrigues; Júlia Fernanda Mariotto Casini |
CRÍTICA URBANA N.18 |
A população em situação de rua é um fenômeno urbano que expressa, também numa cidade planejada, as desigualdades existentes na estrutura social. Tal fenômeno é crescente em todo o Brasil e também em Maringá.
Esta cidade é localizada no interior do Brasil, mais especificamente na Região Sul do país, no Estado do Paraná. A cidade é sede da Região Metropolitana de Maringá, composta por vinte e seis municípios, em sua maioria de pequeno porte, sendo Maringá uma cidade de porte médio, a maior desta região com 430 mil moradores.

Foto feita por Vital Ben Waisermman, em 10 de agosto de 2020, por volta das 08:15 da manhã. Local: Praça Raposo Tavares, em frente ao Terminal Urbano de Maringá – PR.
A cidade da canção… a cidade planejada…
Conhecida como “Cidade Canção”, por influência de uma canção de sucesso à época da fundação da cidade – “Maringá, Maringá”, composto por Joubert de Carvalho, em 1935. Maringá alimenta, local e nacionalmente, uma imagem sui generis, na qual não existiriam os mesmos problemas sociais de outros centros urbanos brasileiros, como favelas, ocupações irregulares, moradores de rua; uma cidade que ocupa os mais positivos rankings nacionais, tendo sido identificada no ano de 1999 como a “Dallas brasileira” em matéria veiculada numa revista de circulação nacional. Nesta cidade, a condição de invisibilidade da população em situação de rua é sempre muito presente.
Maringá possui, desde sua origem, um planejamento urbano caracterizado pela segregação social e pela valorização imobiliária, que almeja frequentemente a incorporação de população solvável. Assim, a cidade planejada não admite a existência de grupos populacionais vulnerabilizados, pois estes contrastam a imagem que o marketing busca vender.
Uma pesquisa censitária desenvolvida pelo Observatório das Metrópoles vinculado à Universidade Estadual de Maringá (UEM), realizada nos anos de 2015 a 2020, confirmou o aumento da população em situação de rua nesta cidade, registrando 1.891 pessoas vivendo nas ruas no período pesquisado. Importa saber que 2020 foi um ano atípico, devido à pandemia da Covid-19, impossibilitando a realização da pesquisa conforme ocorrera nos anos anteriores. Também é ano de eleições municipais para prefeito e vereadores, contexto no qual, a partir da pesquisa, já foi observado em anos anteriores movimentos do poder público municipal de “retirada” dessas pessoas da rua, com o intento de mostrar a cidade como bela, sem problemas sociais e sem a presença de grupos considerados “incômodos” para a cena urbana.
No ano das eleições de 2016, a pesquisa identificou um decréscimo no número de pessoas em situação de rua em relação aos outros anos. Reitera-se que em 2020, o contexto de pandemia não permitiu o desenvolvimento da pesquisa com o uso das mesmas metodologias, mas a partir de observação realizada nos mesmos trajetos percorridos pela pesquisa nos anos anteriores (sem contato direto, devido ao distanciamento social necessário para diminuir o risco de transmissão da Covid-19), foram identificadas 56 pessoas vivendo nas ruas e 307 em instituições de acolhimento, número este que dobrou em relação ao ano anterior – 2019, que era de 154 pessoas acolhidas. Alcançou-se, em 2020, uma estimativa de que em Maringá existem cerca de 478 pessoas em situação de rua. Destaca-se que o aumento do número de pessoas acolhidas se deve ao contexto de pandemia, sendo o acolhimento uma das estratégias desenvolvidas para propiciar o distanciamento social a essas pessoas.

Vista de Maringá. Foto: Gabriel Rodrigues em Unsplash.
As pessoas em situação de rua não aparecem nos dados
Importa relatar que o Brasil não possui dados oficiais sobre esta população, porque ela não é abrangida nas pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pois os dados censitários são coletados com base nos domicílios e essas pessoas estão desabrigadas. Existem, entretanto, estimativas a partir de dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que alcançaram um número de 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil em 2020 . A ausência de dados oficiais dificulta a implementação das políticas públicas voltadas para este contingente e faz com que se torne ainda mais invisibilizado pelas políticas sociais.
Algumas cidades brasileiras realizam suas próprias pesquisas sobre essa população. Como já mencionado, em Maringá, a pesquisa é iniciativa do Observatório das Metrópoles vinculado a UEM em parceria com outros atores sociais; portanto os dados quantitativos apresentados acima representam um esforço para conhecer as características desta população e subsidiar o poder público na formulação de políticas públicas. A seguir, apresentamos alguns dados qualitativos desta pesquisa, retratados a partir de relatos dos sujeitos da pesquisa.
A cidade planejada não suporta as pessoas que vivem nas ruas
Historicamente, as pessoas que vivem nas ruas são tipificadas de maneira negativa (vagabundos, sujos, bandidos, perigosos etc.). Esta construção social legitima várias formas de violência -física, simbólica e institucional- contra essas pessoas, além de referenciar a construção da identidade pessoal destes sujeitos. Embora seja um fenômeno urbano heterogêneo, podemos perceber que os habitantes das ruas compartilham a condição de expropriados do direito à cidade.
A pesquisa mencionada investigou as características e as condições de vida dessa população em Maringá com relação aos seguintes aspectos: identificação e perfil; trajetória e família; renda; alimentação, cuidado e saúde; e violência e segregação. Este último eixo – violência e segregação – revelou aos pesquisadores impactantes dados qualitativos, obtidos por meio de questões abertas do questionário da pesquisa, que apresentam relatos das pessoas que vivem nas ruas.
Especificamente no que tange a violência e segregação sofrida pelas pessoas em situação de rua, os dados evidenciam o que as pessoas residentes em Maringá pensam sobre as pessoas em situação de rua. Os dados sobre violência física demonstram que os principais autores da violência são: os policiais miliares (32% dos casos); a violência praticada entre as pessoas em situação de rua aparece em segundo lugar (27%), e guarda municipal (19%), terceiro agente de violência. Vê-se, portanto, que a forma de violência mais sofrida por essa população abarca também a violência institucional, uma vez que é praticada por agentes públicos, nos mostrando que o Estado é agente violador, detentor do “monopólio” da violência, historicamente exercendo violência contra minorias sociais, tornando a violência “legalizada”.
A violência praticada entre as pessoas em situação de rua também é um dado expressivo obtido pela pesquisa, apontando que é a segunda forma de violência mais praticada. Deste modo, as pessoas em situação de rua são vistas como ameaça à ordem pública e não como ameaçadas por esta, diante da violação de direitos a que são submetidas, levando-as a internalizar e naturalizar valores violentos –enquanto estratégia de sobrevivência- apropriados de forma inconsciente, como componentes da cultura da rua.
Ocorre, ainda, violência simbólica, associando essas pessoas ao lixo, crime, perigo, drogas, a sujeira da cidade, àquilo que torna desagradável a paisagem urbana. A partir de nossa pesquisa, foram coletados relatos de pessoas que vivem nas ruas em Maringá os quais expressam a violência simbólica exercida contra elas. Quando os pesquisadores perguntaram: “o que você acha que as pessoas da sociedade pensam sobre as pessoas em situação de rua?”, a maior parte das respostas revelam preconceito e violência de modo contumelioso.

Foto: Autoras
As vozes que ecoam
É possível observar, através dos dados, a presença no imaginário popular de representações sociais pejorativas sobre a população em situação de rua, a partir das falas desta própria população:
“Pensa que a gente é vagabundo, inútil, não vale nada, que deveria morrer” (sic). “Algumas discriminam, até batem” (sic). “Desprezo. Pra eles nóis é lixo” (sic). “As pessoas mudaram na gentileza e compreensão. O maringaense virou uma pessoa violenta” (sic). “Eu vi o Maringá lindo, colorido, mas hoje, depois de 30 anos, mudou (sic). “Maringá tá pintando uma coisa que não é. Olham como se fossem monstros. Sentem nojo. É bem estranho” (sic).
Tais relatos expressam como as pessoas em situação de rua sentem-se em relação aos demais, estando implícitas, nestas falas, relações de dominação. Revelam preconceito, discriminação e estigmatização da pessoa que vive nas ruas. Os dados demonstram uma desumanização dessas pessoas e compreensões repressivas e higienistas:
“Que todos deveriam ser exterminados, mortos” (sic). “Que quem usa droga não passa de inseto. São bichos. Acham feio, querem excluir” (sic). “Sujos. Desfaz» (sic). “As pessoas acham que é doença de espirito” (sic).
Tal processo de desumanização, associando as pessoas em situação de rua a lixo, inseto, bichos ou que sofrem de problemas de ordem espiritual, sobrenatural -negando, assim, a materialidade dos problemas socioeconômicos estruturais- tem justificado o uso da força, o policiamento ostensivo, a arquitetura hostil e uso de artefatos urbanos para exclusão e expulsão dessas pessoas do espaço público.
Longe de encerrar o debate aqui, a discussão que realizamos, nos direciona para a hipótese de que quanto maior o preconceito em relação às pessoas em situação de rua, mais distantes do direito à cidade elas se tornam e mais são invisibilizadas e excluídas do planejamento urbano. Neste sentido, entendemos que somente com a modificação das representações sociais se pode garantir direitos sociais à população em situação de rua, pois se no imaginário social não se compreende o fenômeno como questão social, política e econômica, dificilmente ele comporá a agenda pública da cidade de maneira humanizada.
Nota sobre as autoras
Ana Lucia Rodrigues: Vereadora eleita para o mandado de 2021-2024. Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá/PR, Brasil (UEM), coordenadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo UEM/Maringá. Doutora em Ciências Sociais-Sociologia e Pós Doutora em Urbanismo. E-mail: alrodrigues1962@gmail.com
Júlia Fernanda Mariotto Casini: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá/PR, Brasil (UEM). Assistente Social do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: juliamcasini@gmail.com
Para citar este artículo:
Ana Lucia Rodrigues; Júlia Fernanda Mariotto Casini. Vozes que ecoam nas ruas da cidade canção.Uma análise da população em situação de rua em Maringá. Crítica Urbana. Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.4 núm. 18 Vivir en la calle. A Coruña: Crítica Urbana, mayo 2021.